O dia em que a privatização chocou-se contra um muro — e matou 50

Causas da tragédia ferroviária de Buenos Aires já estão claras. E revelam quanto é preciso aprofundar processo de mudanças vivido pela América do Sul

Por Antonio Martins

“Assassinos, vocês são assassinos”, reagiu a multidão presente na estação Once. Protegido por policiais, Roque Cirigliano, diretor de Trens de Buenos Aires (TBA) — uma operadora privada do sistema ferroviário da capital — falava à imprensa ontem (23/2), no mesmo local em que, na véspera, um acidente matara 50 pessoas e ferira mais de 700. Alegava que o desastre pode ter sido provocado por “falha humana”, já que “o serviço da TBA é aceitável”. À medida em que passam as horas, porém, multiplicam-se os sinais de que as causas foram outras: falha no sistema de freios, provocada por duas décadas de privatização, descumprimento de normas de segurança, desvio de subsídios transferidos pelo Estado e degradação geral dos serviços.

Fabricado no Japão, em 1962, o trem 3772 patinou nos trilhos da linha Sarmiento, nos últimos quarenta metros que o separavam da barreira de concreto ao final da plataforma 2 da estação e se chocou contra ela. Algumas semanas serão necessárias para que sejam divulgadas as conclusões oficiais sobre o acidente. Mas após entrevistar ferroviários e engenheiros de segurança, o jornal Pagina 12 produziu matérias que parecem confirmar o veredito dos usuários indignados.

O maquinista, Antonio Cordoba, de 28 anos, tem “excelente folha de serviços prestados”, segundo todos os seus colegas (ele está hospitalizado, mas fora de perigo). Ainda que tivesse se descuidado ou ficado inconsciente, esta ausência deveria acionar um sistema automático de travamento das rodas, conhecido como o “freio do homem morto”. Só a falha deste dispositivo, ou do circuito de ar comprimido que aciona os breques, parece capaz de explicar o choque. Os antecedentes reforçam esta hipótese. Privatizadas em 1991, as sete linhas de trens de subúrbio de Buenos Aires são operadas por quatro grupos empresariais. As composições são velhas, reformadas precariamente para aumentar a capacidade de carga, sujas e desconfortáveis. Os contratos firmados previam expansão do sistema, jamais executada. A manutenção deteriorou-se continuamente. Ainda em 2008, um relatório do órgão correspondente à Procuradoria da União brasileira apontou, entre outras falhas, falta de freios de emergência e inoperância dos freios de mão.

Como no Brasil, a privatização criou agências regulatórias, supostamente encarregadas de garantir a qualidade dos serviços públicos. Na Argentina, a que deveria atuar no setor ferroviário chama-se Comissão Nacional de Regulação dos Transportes (CNRT). Mas  “os inspetores estão cansados de fazer relatórios. Eu os li. Atestam que a manutenção está mal-feita. Concluem que é preciso aplicar multas, mas nada ocorre”, contou ao Página 12 o engenheiro Norberto Rosendo, que dirige uma ONG denominada Salvemos al tren.

Há suspeitas de desvio de recursos públicos. O Estado argentino subsidia o transporte ferroviário, gerido por particulares. Oferece recursos tanto para redução das tarifas (um bilhete custa cerca de R$ 0,50) quanto para modernização dos serviços. Só nesta rubrica, a TBA recebeu cerca de 60 milhões de reais, em 2011. Porém, ela é parte de um conglomerado maior: o Cometrans (Consórcio Metropolitano de Transportes). Constituído nos anos 1990, é dirigido por empresários ligados ao ex-presidente Carlos Ménem, que promoveu as privatizações. Controla também linhas de ônibus, fábricas carrocerias e material ferroviário. “O grupo usou os subsídios para comprar ônibus para a empresa Plaza”, denunciou o engenheiro Rosendo.

Os dois últimos governos argentinos, de Nestor e Cristina Kirchner, reviram parcialmente a situação que herdaram. Em julho de 2004, rescindiu-se a concessão de outro grupo privado atuante no setor ferroviário (o Metropolitano), por “faltas graves e reiteradas na prestação do serviço, pontualidade, conforto e manutenção do material”. Ontem, o ministro do Planejamento, Julio de Vido, informou que a presidente Cristina não exclui a hipótese de adotar idêntica medida, em relação ao TBA.

Desde Nestor Kirchner, foram também acelerados os investimentos públicos em transportes. Porém — mais uma triste semelhança com o Brasil — destinam-se quase exclusivamente a autoestradas e avenidas. Em seu auge, nos anos 1950, o sistema ferroviário argentino constituiu uma malha de 50 mil quilômetros de trilhos — então, a décima do mundo. Em 1991, ano da privatização, ela estava reduzida a 30 mil quilômetros. Duas décadas depois, não restam mais que 7 mil. O desastre de ontem foi o oitavo, nos últimos quatro anos e o terceiro com vítimas fatais, nos últimos doze meses.

Há vinte anos — na Argentina, no Brasil e em todo o mundo — os defensores da privatização defendiam-na sob argumento de o Estado é ineficiente. As mortes desta semana são mais um emblema de seu fracasso, presente em quase todos os tipos de serviço público.

Mas a tragédia da estação Once também mostra que a página ainda não foi virada. Interrompeu-se o desmonte ou venda das empresas estratégicas (como a Petrobrás). Lançaram-se programas de redistribuição de riqueza. Houve forte redução do desemprego. Isso ocorreu, em grande medida, porque o estado voltou a investir e a induzir o investimento privado. No entanto, esta ação não contrariou as lógicas que produzem constantemente desigualdade, ataque à natureza, “desenvolvimento” cego. No Brasil e Argentina, recursos e políticas estatais continuam a estimular, por exemplo, a produção maciça de automóveis, a mineração devastadora, o grande agronegócio. E seguem incapazes de assegurar conquistas básicas — como saneamento decente nas metrópoles, mobilidade urbana para as maiorias ou a simples garantia do acesso de todos à banda larga de internet.

É um caminho árido, em sociedades nas quais as elites têm enorme poder e mentalidade escravocrata. Por isso, talvez a melhor homenagem às vítimas Once fosse a consciência de que, na América do Sul, não basta retomar o investimento estatal. É preciso reverter seu sentido, para evitar o choque contra o muro.

Enviada por José Carlos.

http://rede.outraspalavras.net/pontodecultura/2012/02/24/o-dia-em-que-a-privatizacao-chocou-se-contra-um-muro/

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