O Brasil que a classe média não vê

Uma repórter do centro de São Paulo relata breve visita ao mundo das Culturas Periféricas e às “quebradas” das metrópoles — territórios onde talvez já viva a maior parte dos brasileiros

Por Fernanda Estima*, em Teoria e Debate

O habitante da capital paulista, conhece as periferias de sua cidade? E a produção cultural surgida e muitas vezes autofinanciada que lá acontece? Com a pauta sobre o tema, constatei que conheço pouco ou praticamente nada da periferia.

Mais gente vive assim, sem saber o que está acontecendo por aí… Por meio da internet é possível “ir” um pouco até as periferias, ter uma noção do lado B da diversidade cultural brasileira. Cada periferia tem sua especificidade e, dependendo do enfoque, ela pode ser um conceito relativo. Mas o resumo simplista para definir periferia pode ser como o local onde pessoas vivem, fora do centro das grandes cidades. Para a urbanista Raquel Rolnik, a cultura da periferia ganhar cada vez mais espaço dentro e fora dela.

Em São Paulo há 96 distritos, dos quais 57 ficam na periferia e somam 6.838.641 habitantes, ou seja, 63% da população, com dados do IBGE de 2010. São onze regiões com população acima de 200 mil habitantes. Todas na periferia: Sapopemba, São Miguel, Jardim São Luís, Jardim Ângela, Jabaquara, Itaquera, Itaim Paulista, Grajaú, Cidade Ademar, Capão Redondo e Brasilândia. População total: 2.688.757 habitantes, mais do que em quase todos os 39 distritos não periféricos de São Paulo juntos. É importante saber como  vivem essas pessoas. Um povo pobre, trabalhador, que luta e busca ser feliz apesar de tudo. “Um povo lindo, um povo inteligente”, como dizem os poetas da Cooperifa. Um povo que merece ser visto pelas lentes da TV mostrando aquilo que tem de mais bonito.

Já disse Antônio Abujamra, em seu programa Provocações, que “as periferias desse enigma brasileiro, periferias que, ao contrário do que era de se esperar, vão buscar inspiração na Jamaica para fazer músicas de letras quilométricas: rap, hip-hop, funk. As pessoas, gostem ou não dessas coisas, não podem ignorar que é por onde a periferia descarrega seu discurso político; avisando à classe média e às elites para irem devagar, que as coisas têm limite”.

“Esse grande estilo de vida que é o hip-hop está aí pra criar alternativas ao que está aí exposto”, explica o rapper GOG. Genival Oliveira Gonçalves também é das periferias, mas de Brasília. Mais antigo, tem no discurso não só uma das questões básicas que definem periferia, a exclusão social, mas também o tema racial, de crítica à mídia corporativa e, indo além, em nome dos que morreram torturados pela ditadura.

Se a produção cultural da periferia seguir GOG, muita coisa poderá ser diferente no futuro… Os militantes do setor acreditam que a cultura revoluciona. É uma boa aposta! Ele crê na mudança do modus operandi… E vai direto ao ponto: “Se não nos dão oportunidade de mostrar, vamos criar todo um mundo paralelo para fazer isso. É preciso dizer que no Brasil existe uma luta de classe, de verdade!”.

Não só as palavras, muitas vezes duras, do hip-hop estão nas periferias. Saraus de poesias, cinema na laje, peças de teatro, exposições e instalações artísticas.

O geógrafo Paulo Roberto Andrade de Moraes mostra, em seu estudo A Espacialização dos Eventos Culturais na Cidade de São Paulo, a concentração dos grandes eventos culturais em poucas regiões na cidade de São Paulo. Tendo como base o guia semanal de um jornal de grande circulação, fica evidente a grande oferta de equipamentos culturais principalmente nas regiões oeste, central e sudoeste.

A capital paulista possui 110 museus, 160 teatros, 294 salas para shows e concertos e quase 11 milhões de habitantes espalhados por diversos distritos e bairros. Trata-se de uma enorme cidade. E  muitas vezes frequentar esses espaços é caro e distante para quem está na periferia.

A concentração de eventos culturais se dá exatamente onde também estão os segmentos da população de maior poder aquisitivo. “A dificuldade na democratização ao acesso à cultura ocorre pela questão geográfica e econômica, que em alguns pontos, quando se trata de São Paulo, são indissociáveis”, comenta o pesquisador. Ele também alerta para a necessidade de alterar a Lei de Incentivo à Cultura. “As empresas não querem arriscar em algo que não tenha retorno garantido. Isso é um erro! Se quiserem dedução de imposto façam com que a cultura seja mais bem difundida e promovam a democratização cultural.”

Mas quem fica e está nos bairros mais afastados faz o quê? Na dita periferia paulistana se concentra grande número de jovens, que estudam, trabalham, fazem ambas as coisas ou nenhuma delas. Nos debates  sobre as necessidades das juventudes a cultura é sempre ponto importante. Mas não só a juventude habita essas paradas. De crianças a idosos, a periferia tem todas as faixas etárias.

Gil Marçal, coordenador do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da capital paulista, explica: “No VAI, em 2011, o orçamento foi de R$ 3,05 milhões, com 145 projetos contemplados, 135 de pessoas físicas e dez de pessoas jurídicas. Os projetos são de diversos tipos: montagem de espetáculo, circulação, produção, literatura, hip-hop, artes cênicas, espaços culturais etc.”

O programa foi criado pela Lei nº 13.540, de autoria do vereador petista Nabil Bonduki, e regulamentado pelo Decreto nº 43.823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, sobretudo de jovens de baixa renda e de regiões do município desprovidas de recursos e equipamentos culturais.

Segundo Gil, à medida que avançam os serviços públicos e a cidadania, a periferia vai mudando também. O VAI tem por objetivos estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno produtor e criador no desenvolvimento cultural da cidade; promover a inclusão cultural; estimular dinâmicas culturais locais e a criação artística. Desde 2004, quando da sua implantação, foram executadas seis edições.

Ainda no começo dos anos 1990, em São Paulo, teve início uma mudança da visão dos jovens na cidade e da própria cultura como ferramenta de transformação, engajamento. Ações não só de governos, mas principalmente de organizações não governamentais, ajudaram na construção de grupos e atividades, gerando hoje uma expressão cultural muito mais forte.

Gil é entusiasta do assunto e ele próprio é filho do Jardim São Luís, na zona sul paulistana. “A produção é imensa e difícil de mensurar. Tem cinema de quebrada, oficinas de formação do olhar, produção de vídeos (que inseriu muitos jovens na prática do audiovisual). Toda uma nova geração de videomakers. O barateamento dos equipamentos eletrônicos deu à galera a possibilidade de produzir”.

Ele relata também que os saraus, uma articulação fundamental para fixar a imagem da cultura das periferias, têm um circuito grande. Além da divulgação da produção poética, estimula debates e a organização local. Em 2008 aconteciam mais de sessenta saraus e todos tinham como protagonista o jovem da periferia. Agora é para todas as idades. “As ações acabam envolvendo os jovens, mas isso não quer dizer que a cultura das periferias seja feita só por eles”. E o VAI fortaleceu o circuito que se constituía. Em 2011, por iniciativa de Gil, os organizadores da Virada Cultural instalaram o palco Cultura Periférica, como forma de levar ao centro o que está sendo feito longe dele.

Um bom exemplo são os saraus poéticos. O poeta Sergio Vaz, um dos idealizadores do Cooperifa, pergunta: “Alguém pode me explicar como um sarau de poesia na perifa de São Paulo leva  quatrocentas pessoas para ouvir e falar poesia?”.

“Quando a gente fala que gosta da periferia não quer dizer que odiamos outros lugares. Você ama a tua mãe, mas não odeia a dos outros”, explica o poeta sobre a preferência de produzir e estar nos espaços mais distantes. Sempre lembrando que “a Poesia está na pauta dos despautados contrariando os despeitados”.

O Sarau da Cooperifa é um movimento cultural que tranformou o bar do Zé Batidão na zona sul de São Paulo em centro cultural, em outubro de 2011 completou 10 anos de atividades poéticas e artísticas na comunidade do bairro de Piraporinha e região.

O aniversário de uma década está sendo comemorado em grande estilo, primeiro com a 4ª Mostra Cultural e agora com um sarau especial com música e poesia em um dos palcos mais importantes da cidade, o Auditório do Ibirapuera. Um espetáculo que promete ser simples, mas mantendo a mesma “pegada” dos saraus que acontecem todas as quartas-feiras no extremo sul da periferia paulistana.

Cine Viela

Os três jovens criadores do Coletivo Recanto Resiste (CoRRe), apresentam o seu projeto: “Tudo começou com essa vontade louca de parar de reclamar e agir. Meter a mão na massa e trazer, através da cultura, a transformação necessária a esse bairro da região de Parelheiros, na periferia sul da cidade cinza”. Segundo Thiago Beleza, Adriano Onairda, Luiza Mançano “a periferia se levanta e começa a tomar pra si tudo aquilo que sempre lhe foi negado. Decretamos o nascimento de mais um coletivo, chegando pra somar na luta das periferias”.

Aprovados pelo VAI, estão a todo vapor com o Cine Viela, que pretendem expandir para as vielas de outras “quebradas” utilizando uma kombi. “Lutamos para ocupar um espaço que é nosso e por meio dele tomar as rédeas de nosso futuro. Somos a prova de que, com muita CoRReria, podemos  realizar e atender às demandas nunca atendidas pelo poder público. Somos um coletivo que representa a resistência à exclusão imposta a todas as periferias de todos os lugares”.

Luiza conta que a ideia inicial era exibir filmes independentes que levassem os moradores a refletir sobre os problemas do bairro. Mas o público formado foi outro… Em todas as sessões a maioria era de crianças e tiveram de mudar a programação. “Os moradores compreenderam a importância do projeto porque no bairro não tem lugar para criança brincar e para chegar ao cinema mais próximo é preciso ir até o Shopping Interlagos ou até Santo Amaro, o que leva, no mínimo, uma hora e meia”.

A importância da cultura da periferia pode ser medida pela grande quantidade de reportagens nas televisões comerciais e também programas específicos, como o da TV Cultura, semanal, sobre hip hop, Manos e Minas.

Colunista do Le Monde Diplomatique, Eleilson Leite afirma que “a periferia tem seus cantos e encantos. Ela merece estar na mídia. Mas não como invariavelmente aparece, expondo suas tragédias, mas por sua beleza, pela força do seu povo, por sua riqueza cultural e sua vontade de transformar”.  Conclui que o povo não quer sair da periferia, mas quer uma periferia cada vez melhor.

*Fernanda Estima é editora assistente de Teoria e Debate.

Enviada por José Carlos.

http://ponto.outraspalavras.net/2012/02/24/producao-cultural-nas-periferias/

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