Já não são tão habituais quanto num passado recente as denúncias de pessoas negras barradas em blocos do Carnaval de Salvador, cuja maioria da população descende de africanos. Porém, ainda proliferam acusações de racismo na folia. Ataques de machismo também são registrados anualmente. Por isso, atos de discriminação continuam na mira do Observatório da Discriminação Racial, da Violência contra a Mulher e Combate à Homofobia, que realiza sua sétima edição em 2012. Ligado à Secretaria Municipal da Reparação (Semur), o observatório enumera centenas de agressões gratuitas a gays, assédio violento às mulheres e casos de segregação racial verbal ou institucionalizada.
– Quem é racista o ano todo também é racista no Carnaval; a diferença é que usa fantasia – avalia o secretário municipal da Reparação, Ailton Ferreira, que, em entrevista a Terra Magazine, detalha exemplos das ocorrências de anos anteriores.
Ele critica as músicas pejorativas às mulheres e os “machões” que invadem redutos gays para humilhar as vítimas. Entretanto, não há como esquecer que 58% dos 350 relatos do observatório em 2011 foram caracterizados como racismo.
– Ainda temos uma cultura racista e uma marca de racismo que precisa ser apagada – conclui Ferreira.
Confira a entrevista.
Terra Magazine – Como tem sido a atuação do observatório?
Ailton Ferreira – Ele é um instrumento da democracia. Foi implantado em 2006, com o objetivo de identificar os casos de racismo no Carnaval. Porque entendemos que quem é racista o ano todo também é racista no Carnaval; a diferença é que usa fantasia. A partir de 2007 e 2008, o observatório passou a tratar também da violência contra a mulher. E, em 2010, incorporamos a variável da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis). Atuamos com vários parceiros governamentais e da sociedade civil, movimentos negros e etc., fazendo uma campanha de conscientização sobre nosso papel, sobre o comportamento da sociedade, além da necessidade e do dever de respeitar a diversidade. Fazemos esta prevenção, com panfletos e cartazes, na imprensa, nas redes sociais, contatos com os blocos.
E temos os organismos de segurança pública: a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Delegacia da Mulher, a Defensoria Pública e o Ministério Público. A partir das ocorrências do Carnaval, pode ser gerado um inquérito policial e levar o agressor a cumprir a pena que a lei determina.
Além das unidades fixas, teremos aproximadamente 120 trabalhadores – advogados, assistentes sociais, sociólogos, historiadores. Várias instituições participam. A sociedade fiscaliza e a iniciativa privada ajuda a bancar algumas despesas de divulgação. No ano passado, tivemos 350 ocorrências. Não torcemos para ter mais neste ano. A gente torce para que a sociedade melhore.
E o que dizem estas ocorrências de 2011?
Foram 204 relacionadas com prática de racismo e 91 casos de violência contra a mulher.
Quais são as agressões mais comuns?
Contra mulher, o que mais acontece é soco, pontapé e empurrão. São as mulheres que não deixam ser beijadas à força no circuito. Porque muitos homens querem agarrar e algumas reagem, o cara fica furioso e não gosta. Acha que ela está ali, e ele tem direito de abraçar, agarrar, beijar na boca.
Esses agressores têm sido identificados e punidos?
Temos o apoio da Defensoria Pública, que coloca quatro defensoras de plantão, além de uma promotora pública à disposição. São abertos inquéritos no posto da Delegacia da Mulher, na Ladeira de São Bento. A depender do caso, caminha para a área da Justiça. Temos muita resistência, algumas mulheres desistem quando a raiva passa. Às vezes, não quer dar queixa porque fica com vergonha…
A maior parte dos registros em relação a homossexuais é feita por nossos observadores. De 55 queixas de homofobia no ano passado, só duas foram feitas por vítimas. A maior parte não quer se envolver com denúncias.
Em geral, o que fazem contra eles (da comunidade LGBT)?
Puxam cabelo ou a fantasia, batem. Jogam resto de bebida no rosto. É mais na forma da humilhação com os gays. Acontece mais nos redutos deles, no Largo Dois de Julho e num beco da Barra. O machão vai para o lugar deles e lá quer bater, dar tapa. Teve um até que tomou porrada porque mexeu com uma travesti que era capoeirista e quebrou o cara todo no pau.
Quais são os relatos de racismo?
Na maior parte, é verbal. E tem os casos que não são verbalizados: os de vulnerabilidade social. Consideramos racismo institucional aquele que faz, por exemplo, crianças negras dormirem nos passeios enquanto os pais estão trabalhando no Carnaval. Ali tem lama, ponta de cigarro, xixi, resto de comida, o menininho pode ser pisoteado e espancado. São, por exemplo, gestantes, com barrigão, negras, puxando corda de bloco, na condição de inferioridade e de vulnerabilidade.
A intenção inicial do observatório era coletar dados para orientar políticas públicas. No que ele já resultou?
Temos uma Superintendência Municipal de Políticas para as Mulheres. O Estado da Bahia possui hoje uma Secretaria de Mulheres para demandas específicas. E a Prefeitura instalou uma unidade permanente de denúncias contra racismo, violência e homofobia, no primeiro piso da Estação da Lapa, que funciona no ano inteiro. E também foi elaborado o Estatuto das Festas Populares, coordenado pelo vice-prefeito Edvaldo Brito, para a proteção social dos agentes que atuam no Carnaval, como ambulantes e cordeiros.
O observatório não é só para prender e punir pessoas, é para formar uma nova sociedade, com uma nova consciência, e para aferir para nós como estamos nos tratando e relacionando com o respeito ao próximo. É uma prática da democracia.
Nas edições anteriores, o observatório recebeu denúncias de tratamento discriminatório e agressões a negros por parte de policiais e funcionários da Prefeitura. Ao longos desses anos, houve evolução neste sentido?
Claro que ainda existem exageros, mas a polícia, hoje, é nossa parceira. Temos, dentro do observatório, policiais afrodescendentes do Núcleo de Religiões de Matriz Africana da Polícia Militar, chamado Nafro, que atua conosco, inclusive panfletando e orientando os policiais. Fiz palestra para 1.200 policiais e videoconferência para todos os quartéis do Estado, falando sobre essa nova consciência, a forma de abordagem, o respeito às pessoas, independente da cor da pele.
Um fiscal da Sesp (Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Prevenção à Violência) deu um cascudo em uma criança e foi demitido pela Prefeitura ainda no Carnaval. Serve de exemplo. A busca não é punir, é melhorar a postura.
O que já foi feito em relação às reclamações sobre a exploração da figura feminina no Carnaval?
Colocamos no Estatuto das Festas Populares dois pontos: a não utilização de peças e símbolos sagrados, de quaisquer religião, como adereços dos blocos; e o desrespeito à figura da mulher como objeto sexual ou coisa parecida. Temos que fiscalizar para fazer funcionar.
Não é nem com a mulher (nua) pintada em cima do trio que a gente se preocupa mais, e sim com músicas que chamam a mulher de ‘cachorra’, ‘vagabunda’, ‘ordinária’… ‘Tapa na cara’… ‘Você ficar de quatro, sinhá vaca’… Isso não é legal. Cai no ouvido das crianças, a menininha também vira uma vaquinha, uma cachorrinha. A mulher adulta ainda pode se defender. Mas e a criança que não pode? Esse tipo de música não ajuda a melhorar a sociedade. Incita a violência e o desrespeito. Porque tem cara que começa a fazer isso, acha que pode.
A proibição de ambulantes armarem tendas para dormir nos circuitos do Carnaval já é resultado das apurações do observatório?
É. Algumas escolas do circuito serão usadas como creches durante as festas para acolher os filhos dos ambulantes. Mas muitos não colocam as crianças lá porque querem ficar com elas por perto, às vezes querem que elas ajudem no trabalho ou têm algum receio, não confiam. Tem sido feita essa campanha.
Na sua avaliação, que resquícios da escravidão ainda se mantêm em Salvador
Ah, tem alguns casos. Por exemplo, a empregada doméstica que dorme no emprego, num quarto no fundo da casa, onde ficam a cadeira quebrada, os patins, a bicicleta, a esteira (ergométrica), a bola furada, o que não serve mais. Às vezes, a gente esquece que é um ser humano. Entre nós, de um modo geral, ainda há uma dificuldade de perceber que existem autoridades, homens e mulheres, que são negros; sou secretário municipal, sou negro e, algumas vezes, tenho que ficar explicando. Há ainda resquícios, sim. No comportamento, na postura, no carinho, no cuidado, no saber ouvir.
Os cargos importantes não são dos negros. Nas cadeias, nas atividades de limpeza e serviços gerais, a maioria é negra. Das 500 maiores empresas brasileiras, apenas 17% têm diretores negros. Ainda temos uma cultura racista e uma marca de racismo que precisa ser apagada. A sociedade aprendeu que trabalhos pesados são atividades de negros. E estamos aprendendo a fazer diferente, ainda demora um pouquinho.
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5615500-EI6578,00.html