Eliana Calmon: “O Judiciário precisa assumir seus próprios erros”

Simplificação dos relatórios e aprofundamento nas investigações de magistrados suspeitos de corrupção, com o cruzamento de informações patrimoniais foi uma das medidas adotadas pela corregedora do CNJ, Eliana Calmon Alves. Morosidade é principal entrave, e a virtualização é a saída

Por: Márcia Junges

“Em um país como o Brasil que durante quatro séculos foi patriarcal, agrário, patrimonialista e de forte exclusão social é natural que tenha criado uma desigualdade tal que sequer a Justiça consiga vencer, por enquanto. Afinal, a exclusão social e a pobreza ainda obstam o acesso de qualidade à Justiça. Vejam bem, há menos de 130 anos ainda éramos escravagistas”. A declaração é da ministra do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Eliana Calmon Alves, em entrevista concedida por e-mail, com exclusividade, à IHU On-Line. Em sua opinião, o Judiciário não atende as demandas e expectativas do povo em função da demora e da qualidade: “Daí a imagem que tem o Judiciário entre os jurisdicionados. A minha luta é para que o Judiciário reconheça esta realidade, assuma os seus próprios erros, do presente e do passado e se esforce institucionalmente para reverter esta realidade”. Há 15 meses no cargo de corregedora, Eliana destaca que sua grande meta é “tentar acelerar o processo de mudança dentro do Poder Judiciário, fiscalizando e incentivando o cumprimento das metas traçadas pelo CNJ, viabilizando as gestões embaraçadas por problemas locais ou circunstanciais e também combater a corrupção que, embora pequena, não se pode negar, também chegou à Justiça”. Em sua opinão, a morosidade é o principal desafio da justiça brasileira, e a virtualização “é o caminho da nova burocracia judicial, sem a qual nada será possível no volume de demandas que hoje circulam no Poder Judiciário”.

Eliana Calmon Alves
é ministra do Superior Tribunal de Justiça desde junho 1999. Desde setembro de 2011 é corregedora nacional no CNJ. Foi ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral entre 2008 e 2010. Bacharelada em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA em 1968, cursou especialização em processo pela Fundação Faculdade de Direito dessa instituição em 1982. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos compreender a autonomia do Judiciário frente aos outros poderes brasileiros?

Eliana Calmon Alves – A Constituição Federal, de forma explícita, estabelece a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário em seu Art. 99, caput.

IHU On-Line – Qual é o papel do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e quais são os efeitos práticos de suas atividades?

Eliana Calmon Alves – O CNJ dentro dos seus objetivos macros, procurou responsabilizar o Poder Judiciário pela sua gestão, ao tempo em que também buscou democratizar internamente o Poder bastante verticalizado, instituindo o planejamento estratégico, a base para se obter a reformulação dos quadros de pessoal, controle administrativo, transparência e publicidade, com ações de planejamento, coordenação e controle administrativos.

Não foi fácil, de início, obter do CNJ as informações e assim dar início aos cadastros que possibilitaram saber o número de processos existentes no Brasil, o tempo de duração desses processos, o número de magistrados em atividade, os seus nomes e os seus ganhos, dados até então de domínio exclusivo do Tribunal.

Obtidas as primeiras informações, mesmo incompletas, foi possível ao CNJ iniciar o plano de modernização e controle da gestão, a partir da proposição de metas de nivelamento. Das metas estabelecidas destaca-se a Meta 2, consistente em priorizar o julgamento dos processos chegados à Justiça até dezembro de 2005. Pela primeira vez na história do Judiciário todas as instâncias pararam para contar os processos, separar os mais antigos e priorizar, como pretendeu a meta o julgamento. Ao final do ano de 2009 verificou-se, do esforço conjunto, o julgamento de quase dois milhões e setecentos processos, embora restasse um estoque de quase dois milhões e oitocentos.

IHU On-Line – Como a senhora pensa, avalia o seu papel de corregedora do CNJ?

Eliana Calmon Alves – Preparei-me para ser corregedora com um único pensamento: tentar acelerar o processo de mudança dentro do Poder Judiciário, fiscalizando e incentivando o cumprimento das metas traçadas pelo CNJ, viabilizando as gestões embaraçadas por problemas locais ou circunstanciais e também combater a corrupção que, embora pequena, não se pode negar, também chegou à Justiça. Estou na Corregedoria há 15 meses e penso que estou conseguindo algumas vitórias. Aos poucos tenho firmado parcerias com Tribunais que no passado tinham administração problemática e agora estão conseguindo alcançar os projetos traçados pelo CNJ.

Consegui solucionar em alguns Tribunais um problema crônico para os seus presidentes, o controle dos precatórios. Especializei dentro da Corregedoria uma equipe para montar em cada Tribunal o setor de precatório, dentro dos padrões de legalidade e com total transparência, de forma a ficar no site da Corte a ordem cronológica dos requisitórios, desalojando em alguns casos um verdadeiro feudo funcional de manipulação dos pagamentos, espantando profissionais que se nutriam há anos de pagamentos intermináveis de precatórios milionários, dando um basta em perversas negociações, com deságios de até 90% em detrimento do credor que, desesperado, vendia o seu crédito por qualquer valor. Estabeleci maior simplificação aos relatórios e aprofundamento nas investigações de magistrados suspeitos de corrupção, com o cruzamento de informações patrimoniais. Para tanto, firmei convênios e termos de cooperação com Banco Central do Brasil (BACEN), Banco do Brasil, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Receita Federal, Controladoria Geral da União (CGU) e outros órgãos.

No que toca às perícias, quando necessárias, consegui o apoio incondicional do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, grande parceiro nas perícias de engenharia.

Encaminhamento de apreensões

Os Tribunais, inviabilizados com acervos imensos de processos antigos foram socorridos pelo Programa Judiciário em Dia, o qual possibilitou no TRF 3a Região – São Paulo, em um ano, o julgamento de 100 mil processos da Meta 2.

O Programa denominado Justiça Plena conseguiu agilizar processos de importância ou de relevância social inquestionável e que há anos estavam paralisadas por entraves burocráticos, alguns dos quais levou o Brasil a responder processos no Tribunal Internacional por violação aos direitos humanos.

Com o Programa Espaço Livre a Corregedoria está conseguindo retirar dos aeroportos brasileiros aeronaves que há anos apodrecem nos pátios, aguardando o desfecho da demanda ao qual estão vinculados.

Preocupa-me sobremaneira o volume de bens apreendidos. Assim, providenciou a Corregedoria a execução de um Manual de Bens Apreendidos (disponibilizado no site da Corregedoria), o primeiro passo para darmos seguimento a um dos itens do Programa Espaço Livre, ou seja, dar um destino útil aos bens apreendidos e incinerar os imprestáveis.

As aeronaves apreendidas estão pouco a pouco sendo liberadas e entregues aos Tribunais para utilização a serviço da Justiça. Já entregamos um avião ao Tribunal do Estado do Amazonas e outro ao TJ/Mato Grosso. O próximo será entregue ao TJ/Pará. Enfim, penso que conseguimos dar um sentido ao trabalho da Corregedoria que não é só disciplinar, e mais do que tudo aproximar os Tribunais do CNJ.

IHU On-Line – A reforma do Judiciário está completa com a promulgação da Emenda nº 45/04? Por quê?

Eliana Calmon Alves – A Emenda 45 foi de felicidade ímpar, ao criar dois grandes órgãos, para mim os pilares de sustentação do novo modelo de Judiciário, adaptado à Constituição de 88: com o CNJ, procurou vencer as barreiras burocráticas, modernizando a estrutura existente; e com a ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados, objetivou dar aos novos juízes formação adequada aos novos tempos. O trabalho não terminou e não terminará porque estando a sociedade brasileira em plena ebulição, é natural que o seu Judiciário siga o termômetro social. Muito temos a fazer, principalmente a nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

IHU On-Line – A senhora afirmou que o principal desafio da justiça hoje é vencer a morosidade.  Nesse sentido, qual é seu ponto de vista sobre a “virtualização” dos processos judiciais (cujo debate foi realizado em novembro em Porto Alegre pela cúpula da Justiça) e mecanismos como a súmula vinculante?

Eliana Calmon Alves – Repito que a morosidade é o principal desafio e a virtualização é o caminho da nova burocracia judicial, sem a qual nada será possível no volume de demandas que hoje circulam no Poder Judiciário. A Súmula vinculante, a Repercussão Geral e os Recursos Repetitivos no STJ são instrumentos modernos e facilitadores.

IHU On-Line – A justiça é a mesma para todos os brasileiros? Por quê?

Eliana Calmon Alves – Em um país como o Brasil que durante quatro séculos foi patriarcal, agrário, patrimonialista e de forte exclusão social é natural que tenha criado uma desigualdade tal que sequer a Justiça consiga vencer, por enquanto. Afinal, a exclusão social e a pobreza ainda obstam o acesso de qualidade à Justiça. Vejam bem, há menos de 130 anos ainda éramos escravagistas.

IHU On-Line – Por que nos últimos anos surgiram tantas denúncias de corrupção no Judiciário?

Eliana Calmon Alves – Primeiro pela democratização e facilitação dos meios de comunicação, segundo porque a Constituição Federal de 88 fortaleceu a cidadania e incentivou a participação popular, terceiro porque hoje se sabe que a denúncia em regra é devidamente processada. Quanto mais facilitamos, mais temos denúncias. Por fim, o aumento constante da base da pirâmide, em seguidos concursos, não têm possibilitado uma melhor investigação dos candidatos à magistratura.

IHU On-Line – Como compreender que o presidente do STF, Cezar Peluso, tenha limitado o já pequeno acesso aos processos disciplinares existentes contra os magistrados?

Eliana Calmon Alves – O ministro César Peluso está absolutamente certo. Ele cumpriu a Constituição Federal (ver Art.93, incisos IX e X) e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) (Art.27,parágrafo 2º). Quem limitou não foi o ministro, e sim a lei, inclusive a Lei Maior.

IHU On-Line – Quais são os principais crimes dos “bandidos de toga” aos quais a senhora se referiu recentemente? Como entender que magistrados estejam envolvidos em contravenções?

Eliana Calmon Alves – Considero que o pior é a venda de decisões e sentenças, as primeiras via liberação de indenizações milionárias por liminar ou tutela antecipada, principalmente contra bancos e empresas grandes, é o mais frequente. Segue-se a ordem de cancelamento de matrículas para assim possibilitar uma nova matrícula e o favorecimento de pessoas amigas – estes são mais raros. O que causa indignação são principalmente, pela gravidade e pelo número as liberações de bens e a soltura de réus que deveriam ficar na prisão, mas são liberados por pagamento. Quero esclarecer que tal prática é numerosa, mas em volume, se considerado o universo de 16 mil juízes, é um percentual bem pequeno.

IHU On-Line – O Judiciário hoje atende às expectativas e demandas da sociedade? Por quê?

Eliana Calmon Alves – Não, não atende pela demora e pela qualidade. Daí a imagem que tem o Judiciário entre os jurisdicionados. A minha luta é para que o Judiciário reconheça esta realidade, assuma os seus próprios erros, do presente e do passado e se esforce institucionalmente para reverter esta realidade. O esforço individual de cada juiz é importante, mas o que precisamos é de um esforço institucional para mudar. Para isto o primeiro passo é o reconhecimento dos erros e pecados, sem apontar culpados, o segundo é abolir com a cultura do repasse que não cola mais: o culpado é o Executivo, que não repassa verbas; o culpado é o Legislativo que não faz leis bem feitas; a culpada é a Constituição Federal que é muito permissiva; por fim a culpa termina por recair no advogado que requereu mal, por despreparo ou desídia. Precisamos colocar o “guizo no gato”. Aceitemos o nosso passado e vamos arregaçar as mangas para construir uma nova história no presente, com seriedade e transparência. Enfim, vamos nos assumir inteiramente.

IHU On-Line – Como analisa a migração de magistrados para o Executivo?

Eliana Calmon Alves – Não são muitos os casos de migração, ao contrário, o que tenho encontrado é um desejo enorme de permanência no Judiciário, haja vista a insistência pela aprovação da Lei da Bengala e até a jocosidade de emendas nas constituições estaduais para admitir a aposentadoria aos 75, na tentativa de forçar o Legislativo Federal.

IHU On-Line – Pensa que a sociedade deveria participar da escolha de magistrados? Por quê?

Eliana Calmon Alves – Acho que o nosso modelo de recrutamento não é ruim, embora falte a etapa da prática. A participação popular na escolha da magistratura de piso seria desastrosa, penso. O que poderia tornar mais democrática era a escolha dos membros dos Tribunais Superiores, submetendo os nomes escolhidos à apreciação popular, via internet, por exemplo. O que precisamos com urgência, urgentíssima, é pensar institucionalmente e fazermos escolhas institucionais e não afetivas ou por politicagem, na prática de toma lá, dá cá.

IHU On-Line – O que o sancionamento da Comissão da Verdade e do Acesso à Informação representam para a sociedade brasileira?

Eliana Calmon Alves – Uma fantástica evolução da sociedade brasileira. Neste terceiro milênio a ordem é transparência e publicidade do passado para bem compreendermos o presente e do presente para podermos administrar o nosso futuro. Não se constrói uma nação com segredos e ou subterfúgios. Precisamos saber das coisas, daí o apelo da comunidade internacional em relação à posição interna do Brasil que em boa hora modernizou-se.

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4247&secao=383

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