José Antonio Moroni*
O Brasil é um país estranho e complexo. Pesquisa realizada em 2004 apontava que somente 4% das pessoas entrevistadas se reconheciam como racistas, mas, contraditoriamente, 87% reconheciam a existência de racismo no Brasil. Se somente 4% se reconhecem como racistas, onde está “guardado” o racismo de todas as outras pessoas? Essa conta não fecha.
Baseado nessa pesquisa, mais de 40 organizações/movimentos da sociedade civil, reunidas no grupo Diálogos contra o Racismo, lançaram em 2005 a campanha Onde você guarda o seu racismo? A iniciativa é voltada para as pessoas brancas.
Temos que perceber que o racismo não faz mal apenas a negros e negras, mas também a nós, brancos(as), e a toda a sociedade. A primeira fase da campanha, por meio de depoimentos espontâneos e reais, mostrou os sentimentos racistas de cada pessoa. A segunda fase, lançada em 11 de maio, mostra algumas situações cotidianas de racismo.
Onde você guarda o seu racismo? Pergunta instigante e que nos faz pensar. Nos faz questionar porque no Brasil o racismo é ainda um tema tabu ou periférico na agenda política. Nos faz pensar nas ações cotidianas de racismo que presenciamos e nos calamos ou achamos tão naturais que não mais percebemos. Por que isso?
Porque não somos capazes de nos indignar com esse massacre cotidiano, permanente, explícito, de desrespeito ao princípio elementar da vida societária, que é o direito de não ser discriminado(a). Por que não somos capazes de perceber que a pobreza no Brasil tem cor, ela é negra (64% da população de baixa renda é negra), é feminina (uma mulher negra ganha quatro vezes menos que um homem branco) e que quase 80% dos jovens assassinados entre16 a 24 anos são negros? Onde está a raiz disso tudo?
Podemos ter várias explicações, remontar ao tempo da escravidão, com teses e mais teses. Mas o fato é que o preconceito racial no Brasil existe, é permanente, é cotidiano e faz mal a toda a sociedade. Ele tem que ser enfrentado não apenas pela população negra, mas por todas as pessoas, principalmente as brancas.
Uma das formas de enfrentarmos é rompendo com algumas concepções. Uma delas é o conceito de ser humano. Um ser humano genérico que só existe nas ideologias dominantes e que não tem base na realidade. Quando falamos em ser humano, entendemos que é o homem (sexo masculino), branco, rico, jovem, saudável, cristão e heterossexual. Essa concepção que identificamos como sendo o “normal” faz com que todos e todas que não se encaixam nessas categorias sejam vistos como “anormais”, diferentes, exóticos etc. No máximo, a sociedade tem que tolerar, aceitar (o que significa ser indiferente) as pessoas que não se enquadram nesse padrão, mas nunca reconhecer a riqueza das diferenças.
Imagine o que é viver numa sociedade que pensa e age assim para uma mulher negra, pobre, idosa, doente, não-cristã e homossexual? Ou rompemos com essa forma de ver e pensar a sociedade ou seremos eternamente uma sociedade discriminatória.
Uma outra questão diz respeito aos privilégios. Nós, brancos(as), temos que admitir que só se acaba com o racismo se estivermos dispostos a terminar com muitos privilégios que temos pelo simples fato de sermos brancos(as), pois a outra face do preconceito racial são os privilégios que desfrutamos como brancos (por exemplo, um homem branco ganha mais que um homem negro, mesmo que desempenhe a mesma função).
Podemos até dizer, e admitir, que sejam “privilégios históricos” e que não lutamos por eles, mas não é possível acabar com o racismo sem mexer, por exemplo, nos mecanismos de concentração de riquezas (os beneficiados pela concentração de todas as formas de riqueza somos nós, brancos). A estrutura social, cultural, política e econômica levou e leva a isso.
Está na hora de sociedade e Estado enfrentarem o racismo com toda a radicalidade e por todos os meios. Só assim, conseguiremos realmente ser a nação brasileira.
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*Colegiado de gestão do Inesc, diretor da Abong, co-coordenador dos Diálogos contra o Racismo
http://www.dialogoscontraoracismo.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=51&Itemid=58