Por Egon Heck
O antropólogo Marco Homero, assessor do Ministério Público Federal de Dourados, Mato Grosso do Sul, recomendou muita paciência e capacidade de ouvir para os missionários da diocese de Dourados, reunidos em encontro de formação. Falou que nos oito anos em que está atuando na assessoria do MPF, exercitou muito a mensagem da canção – ando devagar porque já tive pressa – do cantor sul matogrossense Almir Sater. Os Guarani Kaiowá sabem muito bem fazer as suas políticas e buscar fundamentação e aliados para seus interesses e direitos, afirmou. Homero também citou vários casos em que, apesar de toda boa vontade, acabaram interferindo negativamente nos processos de vida e organização social das comunidades.
De forma muito didática, o antropólogo foi mostrando o processo de invasão, saque e destruição ambiental do território Kaiowá Guarani, no Cone Sul, que era de aproximadamente três milhões de hectares, segundo o antropólogo Fabio Mura, indo do Rio Brilhante até a fronteira com o Paraguai. Ressaltou que a dispersão das comunidades ao longo da bacia desses seis grandes rios – Amambai, Iguatemi, Ivinhema, Dourados, Rio Brilhante e Apa – lhes possibilitava uma vida com fartura e boas condições de equacionarem as tensões e conflitos, através do processo de deslocamento no amplo território. A economia da reciprocidade, onde as florestas constituíam seus supermercados e farmácias, complementadas pelas suas roças, propiciava uma vida saudável e alegre.
Esse quadro, porém, está radicalmente mudado. A partir de 1950 começou um processo de ocupação econômica – agropecuária estimulada pelo governo Getúlio Vargas -, que transformou radicalmente as condições de sobrevivências das populações indígenas da região. Hoje, temos uma população espremida em pequenos pedaços de terra, quando não expulsos para as beiras das rodovias e cidades. De um povo autônomo, passaram a um povo quase totalmente dependente de políticas assistencialistas. Da fartura passaram à humilhação das cestas básicas. Do “Bem Viver Guarani”, com harmonia e paz, passaram ao flagelo das doenças e da fome, das violências e discriminação, da debilitação social e imposições religiosas, da proibição e menosprezo de sua língua, cultura e modo de vida.
Interferências, violência e burocracia
O antropólogo Antonio Brand enfocou mais o aspecto da sobrevivência, trabalho e produção, ressaltando o processo de autonomia em que vivam os Kaiowá Guarani, que está diretamente relacionado à questão de terra e território. Brand trouxe importantes informações, tanto a partir de seu conhecimento acadêmico, quanto de seu trabalho solidário com os Kaiowá Guarani.
Quando em 1978, veio a Dourados para trabalhar na questão indígena pela diocese de Dourados e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Brand disse que era voz corrente de que a questão das terras indígenas no Mato Grosso do Sul estava resolvido. Para sua surpresa, uma das primeiras atividades indigenistas foi apoiar um grupo de famílias do Rancho Jacaré que havia sido levado pela Funai para o Paraguai, e ao retornarem, foram levados pelos fazendeiros para a terra dos Kadiwéu, e suas casas queimadas. Com enorme sofrimento e diversas perdas, o grupo retornou ao local de onde fora expulso, tendo posteriormente sua terra reconhecida.
O processo de colonização significou uma permanente submissão dos povos indígenas ao nosso modelo de sociedade e cultura. Dentre as interferências mais intensas, Brand citou a presença do Estado, das igrejas, escolas, frentes econômicas e políticos, entre outros. O discurso ideológico da integração, com suas parafernálias “civilizatórias”, tem unicamente atendido aos interesses do projeto colonizador, e conseqüente destruído os processos econômicos, culturais e sociais dos povos nativos.
Neste quadro, ressaltou Brand, os mais afetados e impactados são os jovens e as mulheres. E pergunta – “o que estamos fazendo para esses segmentos?”. Ao que afirmou que esse é um dos maiores desafios e dívida que se tem hoje com esses povos. “O importante é que eles continuem e ampliem suas formas de resistência, articulação e organização”, disse. Brand ainda fez menção à Aty Guasu, grande assembleia do povo Guarani, como um dos importantes espaços para fortalecimento das lutas e da atuação das lideranças tradicionais. Momento, inclusive, em que estas se articulam com as novas lideranças, que vêm dos contatos com a sociedade regional e nacional.
A representante da coordenação regional da Funai, Maria Aparecida, expôs os desafios que enfrentam enquanto órgão do governo responsável pela proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas. O atual processo de reestruturação da Fundação esbarra na burocracia e na falta de recursos destinados ao órgão. Destacou o esforço no sentido de se fazer uma mudança de paradigma, a partir da Constituição de 1988, que supera o regime de tutela e abre espaço para a autonomia dos povos indígenas em seus territórios. “Isso tudo é bonito na lei, na escrita, mas muito difícil de sair do pape!”.
Os missionários e aliados dos povos indígenas saíram do encontro mais animados e fundamentados em sua presença solidária e atuação junto aos Kaiowá Guarani.
Hoje foi anunciada a criação da nova diocese de Naviraí, em cuja circunscrição está, talvez, mais da metade dos 40 mil Kaiowá Guarani. Os indígenas e seus aliados estão esperançosos de que esse possa ser mais uma instância de apoio aos direitos dos povos indígenas, desta região da fronteira com o Paraguai.
http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=5593&eid=352