É um prédio imenso, na Avenida Barbacena, em BH. Das grades espessas restam apenas marcas no chão. O número de policiais é reduzido, a funcionária é acolhedora, algo mudou em Minas Gerais. Ali, bem ali, no dia 3 de abril de 2006, o clima era de guerra contra os movimentos populares, quando Aécio era governador do Estado.
Mas, claro, ainda se está muito longe do ‘povo no poder’. Tomara que essa engrenagem estatal louca se coloque nesse rumo!
Os manifestantes sobem as escadas e se concentram no hall de entrada, dançam, cantam, fazem gritos de ordem e, quando dão cinco horas, término de expediente, os trabalhadores saem, aos blocos, e passam pelo meio dos militantes, alguns meio acabrunhados, outros morrendo de medo por causa dos preconceitos plantados em suas cabeças, principalmente durante os últimos doze anos, mas todos, sem exceção, esboçam um sorriso franco quando ouvem a exclamação ‘eles são trabalhadores!’, seguida de palmas e aclamações.
A unidade de classe é possível e necessária!
Sorrisos amáveis, porém, não dispensam a segurança de praxe. Cada membro do Coletivo de Negociação chega ao Guichê, dirige-se à recepcionista, entrega sua identidade, posa em frente à câmera para foto e recebe, depois, o documento com o crachá e um Guia do Visitante minúsculo, verde e amarelo, cujo conteúdo se resume numa série de proibições. Uma chama a atenção: ‘transite somente nos locais autorizados’.
Há coisas lendárias sobre esse prédio imponente, estampado na capa do Guia, cercado de cuidado, segurança e mistério. O que gera a curiosidade de conhecê-lo todo. Dizem que num de seus compartimentos, fechado a sete chaves, há um painel de onde se controla a energia de boa parte do Brasil. E que, em caso de sabotagem, uma simples mala preta, colocada sob os braços, transfere o comando de tudo para qualquer lugar do país.
Um funcionário acompanha cada passo do Coletivo de Negociação, num misto de hospitalidade e vigilância. Ele se coloca ao lado da catraca na entrada, chama o elevador, indica a sala de reunião, dá um passo à frente e abre a porta. Porém, na pessoa de um funcionário comum, pode estar um policial. O Capital é muito sensível, criativo, histérico, quase folclórico!
A mesa da sala de reunião é imensa, comprida e arredondada nas extremidades, rodeada de cadeiras, algumas próximas e outras afastadas, perto da parede, em suplência. Há um microfone à frente de cada assento. Quanta reunião já houve ali, na sala da Presidência, muitas de caráter sigiloso, a imensa maioria contra o povo e a classe trabalhadora! Uma empresa estatal que não cumpre sua função social!
O relógio dá 18 horas! Primeiro chegam três técnicos, depois o Presidente, Mauro Borges, com seus assessores diretos. Ele cumprimenta cada um dos presentes, pegando-lhes a mão, depois toma seu lugar à cabeceira da mesa. Os técnicos o ladeiam. Os assessores se colocam nas cadeiras do canto da parede, mais afastadas.
Nesse dia, ao menos, a mesa tem um tom especial. As bandeiras do MAB e da FETRAF se abrem, bem ao centro e, no entorno da mesa, sentam-se mulheres e homens, militantes, a maioria jovem, forjados na luta para um debate franco e propositivo. Algumas e alguns deles conhecem melhor o setor energético, e seus traumas, do que os técnicos, mas não se ufanam disso, pois querem mudar a ordem e, não, mostrar que sabem.
Na parede, a fotografia de Djalma Moraes, um militar reformado, antecessor do Presidente atual, à frente da empresa por longos 16 anos, conduzindo-a com mãos de ferro, tornando a estatal uma verdadeira máquina de fazer dinheiro para seus acionistas privados, os quais, por algum tipo de manobra, recebem 108% de lucros da empresa em 2013, à revelia de seu compromisso social.
A impressão é que assim esse ex-presidente fica bem, dependurado na parede.
Indignado com a degradação das mineradoras em sua terra natal, Carlos Drummond de Andrade, grande poeta, afirma que ‘Itabira é apenas uma fotografia na parede’. Todo tipo de ditadura será, um dia, assim: uma fotografia apagada, morta, cuja lembrança há de ser um alerta para quem enfrenta o seu terror e constrói a liberdade.
O Presidente quer saber nome por nome e a cidade natal de cada um. Com um lápis, percorre a lista de presença, marca com um X e coloca qualquer coisa que lhe tenha chamado atenção. Parece um professor fazendo chamada na sala de aula. Entre uma e outra apresentação, vai dizendo algo de si: ‘conheço bem esse Estado, fiz muita pesquisa, nasci próximo a Peixoto no Sul de Minas, identifico a região da pessoa pelo sotaque, sou professor há trinta anos na Universidade Federal de Minas Gerais, estou aqui para fazer essa empresa cumprir sua função social’, e assim por diante!
Na outra ponta da mesa, bem à frente do Presidente, está o pequenino David com sua mãe, Soniamara. Parece atento a cada movimento dos Golias, que são muitos. Quando o poder do mando for materializado no sonho coletivo, do socialismo, sairão da alforja essas pedrinhas zunindo e acertando, de cheio, a fronte do sistema.
A secretária do Presidente, embora simpática, está vivamente incomodada com a demora da reunião, e, não se aguentando, corta a conversa: ‘o Presidente tem mais 15 minutos para vocês!’. Estaria atrasado para outra atividade. Ele, porém, faz que não ouve. A leitura da Pauta continua e, após, minuciosamente, responde cada ponto, para alguns dando encaminhamento concreto: ‘a empresa vai fazer um convênio com a Fundação João Pinheiro e iniciar o diagnóstico da dívida social por Irapé’.
Um dos técnicos parece instrumento desafinado. Toca uma nota atrasada. Ele chama de melindrosa a situação do empreendedor do setor elétrico que, diante das possíveis mudanças, poderá assumir uma dívida que não está no seu orçamento. Depois ‘confunde’ demanda de centro popular de energia com Fazenda energética, um projeto abandonado pela empresa em Uberaba. Mas o último incidente foi o melhor: ele ganha um puxão de orelha do Presidente quando, diante da possibilidade de convênio com a Fundação João Pinheiro, sugere que os estudos sejam feitos com uma universidade de Pernambuco a qual já teria executado trabalho semelhante. Pode ser que não dure muito tempo no cargo.
Além dessa Mesa, houve mais duas mesinhas nas lutas de Março, uma na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e, outra, na Cidade Administrativa.
Na Assembleia Legislativa, os manifestantes, apertados no plenarinho, são transferidos para o plenarão. Eles tomam o assento dos deputados e, ao menos nesse dia, a Casa é do povo, sem populismo nem demagogia.
Forma-se a mesinha, com destaque para dois deputados que representam empresas mineradoras ausentes, e um deles, de uma espécie de púlpito, as defende, de unhas e dentes, feito cão a seu dono. E ouve o desabafo de um manifestante: ‘no Norte de Minas somos empobrecidos, pobres são os deputados financiados pelas mineradoras’.
A questão é séria! Os oito minerodutos, uns em projeto outros já construídos, levam água suficiente para três milhões de pessoas.
Na Cidade Administrativa, perto de quatrocentos manifestantes ocupam parte dela, uma área imensa. E após os procedimentos de praxe, o Coletivo de Negociação está numa mesinha, essa quadrada, com oito representantes de secretarias. Um militante é barrado na entrada, uma ligação da chefia resolve o caso.
O que mais chama a atenção nos prédios da Cidade Administrativa, idealizado por Oscar Niemayer, é sua imponência e suntuosidade, coisa bem-vinda somente após garantidos ao menos os direitos elementares do povo. Sem isso é um acinte! Seus corredores por dentro exalam a morrinha nojenta do capital, que ainda infesta toda a estrutura do Estado. Arredar uma mesa do seu lugar pode gerar uma multa de até três mil e quinhentos reais. Não se podem abrir as janelas, o que é contrariado nesse dia 12, com os manifestantes lá embaixo, perto do apartamento onde o Coletivo de Negociação se reúne, e rende uma bonita foto.
É desafiante o caminho que se desenha para a classe trabalhadora e para o povo na conjuntura atual. Três elementos se destacam. A abertura ao diálogo e à unidade de classe, que aproveita portas abertas e abre tantas outras. A redescoberta da rua, palco de disputa até pela ultradireita a qual se apropria da bandeira do Brasil e rouba até a luta histórica da esquerda de verdade contra a corrupção. E o sonho de virar a mesa, materializado em acumulação de força popular.
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*Antônio Claret Fernandes é militante do MAB e contribuiu como missionário na Prelazia do Xingu entre 2011 e 2014. É também colaborador de Combate Racismo Ambiental. Texto originalmente publicado na primeira edição do jornal “A Voz dos Atingidos”, março de 2015.