“O Brasil conseguiu protagonizar o espetáculo deprimente de uma política que não produz mudanças, mas repete compulsivamente os arcaísmos de sua sociedade” escreve Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo. Eis o artigo
Em sua coluna desta segunda-feira (25), Gregorio Duvivier levantou um tema de grande relevância a respeito dos embates eleitorais brasileiros, a saber, o conservadorismo das pautas ligadas a costumes. A seguir as declarações ou o silêncio covarde da maioria de nossos políticos, tem-se a impressão de habitarmos o século XIX. Mesmo comparado a seus vizinhos, como Uruguai e Argentina, o Brasil parece em vias de se transformar em um país exemplar no quesito arcaísmos sociais.
Isto não deveria nos impressionar. Um dos espaços fundamentais de atuação do poder é o aparato jurídico que regula os corpos, desejos e sexualidade de seus cidadãos.
Como nos lembram filósofos como Michel Foucault (1926-1984) e Judith Butler, 58, trata-se de decidir que tipos de vidas podem ser vividas, como elas devem ser vividas e quais, ao contrário, serão excluídas como inumanas, “não-naturais”, aberrantes.
Por exemplo, quais serão as formas de vida afetiva garantidas pelo direito e quais serão aquelas que o direito não reconhecerá, tratando-as como juridicamente inexistentes. Quais serão as substâncias que posso aplicar a meu corpo, ingerir, tragar e quais serão as que não posso. Que roupa posso usar, quem decide sobre o que se passa no corpo de uma mulher.
A possibilidade de viver de outra forma (e mesmo de morrer de outra forma como, por exemplo, por decisão própria) é vista por alguns como a pior de todas as afrontas, a mais perigosa das sedições políticas. Por isso, uma questão política central diz respeito à visibilidade desta plasticidade própria à vida social.
Uma das formas de coibir tal visibilidade consiste em criar um regime peculiar de permissividade no interior do qual a distinção entre o permitido e o proibido funcionará de maneira flexível.
Por exemplo, um país autoritário não é necessariamente aquele que impede seus cidadãos de fazerem certas práticas. Todos nós sabemos que o aborto é legal no Brasil. Todo mundo conhece o endereço de uma clínica de aborto, inclusive a polícia, e se a filha adolescente do deputado conservador engravidar sem querer ele será o primeiro a aparecer por lá. O que é proibido no Brasil é reconhecer tal prática. Proibido é dar visibilidade, é quebrar o discurso consensual, ao menos na classe política. Assim, o autoritarismo encontra-se no fato de aceitarmos a lógica do: “pouco importa o que você realmente faz, desde que você continue a falar e dar a impressão de agir como quem defende nossos valores'”.
Desta forma, o Brasil conseguiu protagonizar o espetáculo deprimente de uma política que não produz mudanças, mas repete compulsivamente os arcaísmos de sua sociedade.
Mais brilhante é a forma, a clareza com que ele discorre sobre esses assuntos. Hoje, o discurso político-partidário é um discurso morto.
Grande Professor! Tenho esperado a sua candidatura e vou continuar esperando…sempre acompanho seus artigos e sua lucidez nas colocações só contribuem para um esclarecimento necessário. Obrigada pelos artigos!
Acho (achamos) Vladimir Safatle brilhante, não é mesmo? Eu estou de pleno acordo com o que acabo de ler.