Um projeto de lei que está para ser votado no Congresso Nacional pode esvaziar o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo, a chamada “lista suja”. Considerado um dos principais instrumentos de combate a esse crime e reconhecido pelas Nações Unidas como um exemplo internacional, o cadastro tem servido de referência para o setor empresarial gerenciar os riscos de manter relações com quem se utilizou dessa forma de exploração do trabalho.
A proposta está embutida em um projeto de outro teor agendado para ser avaliado pela comissão mista que trata da regulamentação de dispositivos da Constituição Federal e de consolidação de legislação na próxima terça (1). O PLS 432/2013 regulamenta a emenda constitucional 81/2014 – a PEC do Trabalho Escravo, promulgada no último dia 05 de junho após 19 anos de trâmite. A emenda prevê o confisco, sem indenização, de propriedades urbanas e rurais em que trabalho escravo tenha sido encontrado e sua destinação a programas de habitação e à reforma agrária.
O relatório do senador Romero Jucá (PMDB-RR), responsável pela regulamentação da emenda, apresenta como proposta, no artigo 1o, parágrafo 7o que “É vedada a inscrição, em cadastro público, de pessoas físicas e jurídicas que sejam parte em processo que envolva exploração de trabalho escravo anteriormente ao trânsito em julgado de sentença condenatória”. O texto encontra-se na pauta para análise da comissão.
Isso cria alguns problemas. Primeiro porque, pelo texto sugerido, todos os cadastros públicos ficariam proibidos de lançar informações sobre pessoas jurídicas ou físicas flagrados com trabalho análogo ao de escravo e não apenas a “lista suja”.
“Pense na hipótese de que tal efeito se estenda para processos que envolvem pensões alimentícias, por exemplo. Embora o efeito se limite aos bancos de dados públicos, a exceção subverte o sistema e isso cria demandas para outras exceções. Os efeitos se espraiam por outros bancos de dados e se choca com a busca da transparência em várias dimensões, mormente nos processos de concessão de créditos. Em princípio todos os bancos públicos ficam proibidos de lançar informações restritivas a perpetradores de trabalho escravo”, afirma Marcus Barberino, professor de direito e juiz do Trabalho da 15a região.
Ou seja, para presentear quem se utilizou de trabalho escravo com um chapéu alheio (o dos trabalhadores), a proposta pode comprometer a própria chapelaria. De acordo com Barberino, isso tem potencial de atingir outros bancos de dados públicos, como o Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), entre outros.
Além disso, é claro, a proposta esvazia a própria “lista suja”. O cadastro é organizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para dar transparência aos nomes de pessoas físicas e jurídicas que tenham sido flagrados pela fiscalização utilizando trabalho análogo ao de escravo e tenham tido acesso à defesa dos autos de infração em primeira e segunda instâncias no âmbito administrativo. A inclusão na “lista suja acontece de forma paralela e independente às ações trabalhistas e criminais que possam ser levadas iniciadas pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Ministério Público Federal contra os infratores.
Portanto, o que a proposta no relatório do senador Jucá sugere é que enquanto houver um processo, o nome não poderia entrar na lista – apesar da lista ser um ato independente do Poder Executivo e não fruto de decisões judiciais. Hoje, é uma lista de fiscalizados e autuados por trabalho escravo. O que a proposta quer é transformá-la em uma lista de condenados por trabalho escravo.
Vale lembrar que os envolvidos e seus escritórios de advogados costumam conseguir sucessivos adiamentos em casos criminais de trabalho escravo e, não raro, o crime prescreve. Na Justiça do Trabalho, decisões são mais céleres, mas ainda assim uma decisão final pode levar anos.
Ouvido por este blog, dois representantes da área de responsabilidade social de grandes empresas reclamaram da alteração. Afirmam que a “lista suja” tem sido um instrumento útil para proteger os negócios da potencial propaganda negativa causada pela utilização, mesmo que involuntária, de matéria-prima feita com trabalho escravo. “A ‘lista’ é útil para mostrarmos aos exportadores que temos garantias de que nossa mercadoria não está contaminada com esse tipo de crime”, afirmou um representante de uma empresa do setor sucroalcooleiro que pediu para não se identificar.
“O problema é que, com essa proposta, o nome do fornecedor pode levar anos para entrar lista e, quando isso acontecer, ele já pode estar regularizado. Daí, alguém dentro da lei será impedido de nos fornecer”, opina o outro representante.
O parágrafo não deixa claro quanto à celebração de acordos no âmbito da Justiça ou com o Ministério Público que sejam firmados para que não sejam necessários processos judiciais.
Há também um ponto no que diz respeito ao acesso à informação. Dados sobre ações de fiscalizações e resgates são de caráter público e acessíveis a qualquer cidadão ou jornalista. Impedir a divulgação das autuações resultantes dessas operações é cercear a sociedade de informações de interesse público que têm sido veiculadas cotidianamente por sites, TVs, rádios, jornais e revistas. Na justificativa da proposta, o relator afirma que o fato do processo judicial não poder correr em segredo de Justiça garantirá a devida transparência.
A proposta também é ruim para o desenvolvimento da economia de mercado, no qual a informação deve fluir livremente para que investidores, financiadores e parceiros comerciais possam gerenciar seus riscos de forma sólida. Vale lembrar que a portaria que mantém o cadastro não impõe qualquer sanção aos relacionados – decisão tomada individualmente pelas empresas em suas políticas de responsabilidade social ou por bancos públicos federais, baseados em uma decisão do Conselho Monetário Nacional.
Essa nova medida no relatório do senador Jucá, que não estava presente em versões anteriores, põe mais fogo em uma discussão que já estava quente uma vez que a sua proposta reduz as condições que podem ser consideradas análogas às de escravo. Aprovado na comissão, ele terá que passar pelos plenários do Senado e da Câmara dos Deputados.
Regulamentação polêmica – O relator do projeto de lei para a regulamentação da PEC do Trabalho Escravo resolveu adotar um conceito parcial de trabalho escravo, mais restrito do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição que não é encampada pelo governo federal, mas está alinhada com a bancada ruralista, que exclui condições degradantes e jornada exaustiva da conceituação.
O governo federal e parte da bancada aliada ao governo e de oposição são contrários a essa regulamentação com conceito parcial e vão defender outra proposta na comissão.
De acordo com a lei vigente, são elementos que determinam trabalho escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social – um exemplo são as mais de duas dezenas de pessoas que morreram de tanto cortar cana no interior de São Paulo nos últimos anos), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, retenção de documentos, ameaças físicas e psicológicas, espancamentos exemplares e até assassinatos) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
A legislação brasileira é considerada pela relatoria das Nações Unidas para formas contemporâneas de escravidão como de vanguarda, pois considera não apenas a liberdade mas também a dignidade como valores precisam ser protegidos. Ou seja, quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo.
Desde 1995, mais de 46 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo pelo governo federal em fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obra, entre outros empreendimentos.