Série do EM revela isolamento de famílias que vivem no meio do Velho Chico. Desconectadas do mundo há gerações, elas não têm luz, desconhecem a internet, pouco sabem sobre Copa do Mundo e menos sobre eleições. Só temem que a seca consuma o rio e seus próprios costumes
Luiz Ribeiro – Estado de Minas
Pirapora, Várzea da Palma, São Francisco, Januária, Pedras de Maria da Cruz, Itacarambi, Matias Cardoso e Manga – Ao longo de toda história, a humanidade nunca se desenvolveu tanto nem tão rápido quanto nos últimos 50 anos. Da popularização do computador à era das redes sociais, o planeta experimentou uma verdadeira revolução nos costumes, na qualidade de vida e na comunicação. Mas, no meio do sertão mineiro, contraditoriamente cercada de água por todos os lados, há uma gente que nem sequer suspeita o que seja internet, vive à luz de lamparina, mal sabe o nome de seus governantes e ignora eventos badalados mundialmente, como a Copa do Mundo. Em ilhas no meio do Rio São Francisco, como na mítica Macondo, do premiado e recém-falecido Gabriel García Márquez, gerações se sucedem isoladas do mundo, desde que foram expulsas de terra firme por fazendeiros e se refugiaram no meio da correnteza.
São pessoas que tocam a existência como se estivessem cinco décadas atrás, transmitindo para seus descendentes práticas primitivas, com quase nenhum contato com inovações tecnológicas ou os benefícios proporcionados por elas. Ilhados do mundo, só percebem os impactos do progresso que chegam com a correnteza: seca fora de época, lixo, assoreamento e morte da fauna, que ameaçam seu próprio estilo de vida. Para mostrar essa realidade, a equipe do Estado de Minas viajou pelo Rio São Francisco até a divisa com a Bahia, cortando vários municípios em pequenos barcos movidos a motor, e conviveu com dezenas de famílias ilhadas. O resultado dessa expedição integra a série “Ilhéus do São Francisco”, que estreia hoje.
Para quem vive no meio da correnteza, o São Francisco é tudo: é estrada, fonte de água e de alimento. É ele que dita o momento de plantar, de colher e de fugir da enchente, carregando o que é possível; mostra também a hora de voltar e catar o barro das margens para refazer as casas que a cheia destruiu. O rio é quem dá o peixe (cada vez mais escasso) e, sim, leva os excrementos. O saneamento é um dos dramas entre os ilhéus do Velho Chico. Sitiados em práticas rudimentares, eles desconhecem o uso de vaso sanitário: as “necessidades” são feitas no mato. Chuveiro também não parte faz da rotina dessas pessoas, que tomam banho no leito, o mesmo de onde retiram a água para beber, sem nenhum tipo de tratamento. Em algumas casas, o antigo “pote” ocupa o lugar do filtro.
As dificuldades que tentam superar são inúmeras, a começar pelas moradias precárias, quase todas de pau a pique – arquitetura herdada do Brasil colônia, com estruturas de barro e varas entrelaçadas e piso de terra batida. Nas cheias, os casebres costumam ser invadidos – e dissolvidos – pela água. Por isso, repetem-se histórias de famílias inteiras que foram expulsas pela enchente e depois retornaram para reerguer as paredes e reiniciar a vida. Esse ciclo peculiar não é apenas comum: é eternizado de geração em geração.
Nas ilhas tampouco há rede de energia elétrica. Nem a informação que chegaria com ela. “Não. Eu não sei de nada”, responde o lavrador aposentado Hélio Augusto do Nascimento quando perguntado sobre a aproximação da Copa do Mundo. Hélio ilustra o isolamento de muitos moradores das ilhas do Velho Chico. Vive em um único cômodo, na Ilha do Cearense, no município de São Francisco, distante 20 quilômetros da cidade. Nativo do lugar, não passa a existência totalmente só porque que tem a companhia de Campeão, um cachorro “pé duro”.
O nome de batismo do companheiro de labuta poderia indicar a simpatia de Hélio pelos esportes. Mas o Mundial de futebol, que começa em junho e mobiliza o Brasil, não faz parte de seus pensamentos. “Tenho um rádio aí e pego… mas não guardo essas coisas na cabeça”, resume. Mas há muito mais coisas entre o Brasil e o mundo, na “terra firme”, que ele desconhece. Sobre a própria vida, inclusive. A seu respeito, declama o nome completo e afirma 65 anos, porém, não sabe exatamente quando nasceu. “Não tenho a data certa, não. O povo antigo não colocava a idade, o dia que nasceu. A mãe sabia ganhar a gente e pronto. Ficava por isso.”
O ilhéu sabe o nome da presidente da República, mas desconhece quem seja o governador do estado e também ignora que neste ano haverá eleições para ambos os cargos. “Fico aqui sozinho, isolado”, justifica. Computador não conhece. De internet, nunca ouviu falar. “Sou analfabeto. Não compreendo nadinha dessas coisas. O povo mais velho não ensinava nada para os filhos. Só ensinava o cabo da enxada, da foice e do machado para trabalhar”, constata. Além do dinheiro da aposentadoria, Hélio vive do que planta. A maior barreira que enfrenta é a dificuldade de se deslocar até a cidade, já que não tem sequer um barco. “Quando preciso ir, gasto 50 contos (R$ 50) de ida e vinda”, reclama.
Açoite de sol e chuva
Em condições semelhantes, na Ilha dos Balaieiros, na altura do município de Pedras de Maria da Cruz, labuta Sinvaldo Teixeira do Amaral, de 64. Analfabeto, o ilhéu até conta que ouviu falar pelo rádio que a Copa do Mundo começa em junho, no Brasil, mas também desconhece que haverá eleições este ano. Sinvaldo conta que, juntamente com outras famílias, ocupa há mais de 50 anos a ilha, onde cultiva o solo na estiagem. “Neste ano plantei feijão. Mas, o sol foi muito forte e acho que não vai dar para colher”, constata.
Quando não é o sol que açoita a plantação, é a água que castiga. O agricultor conta já ter perdido as contas de quantas vezes, em períodos de chuva, teve que se mudar às pressas por causa da enchente, que faz a ilha desaparecer. Assim como os demais moradores, Sinvaldo vive um dilema: sofre com as cheias, mas sabe que não vive sem chuva. É ela que regulariza o nível do rio e garante a manutenção das lagoas marginais, berçários naturais para os peixes.
“A vida na ilha é sofrida demais. Mas vou continuar mexendo aqui até o dia que Deus quiser. Não tenho outro rumo”, afirma. Ele conta que já foi pior: antes, os moradores tinham somente barcos a remo e demoravam horas para percorrer pequenas distâncias. “Agora tem empréstimo para comprar barco ‘rabeta’ (a motor).” A pequena embarcação custa em média R$ 1,2 mil. Quantia que, para os ilhéus, representa uma breve esperança de vencer a solidão e, de tempos em tempos, se comunicar com o resto do mundo.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.