Dia 31 de outubro, movimentos sociais, grupos ativistas e entidades de representação política e sindical voltaram às ruas, no centro do Rio de Janeiro. A razão é a escalada de medidas e atos de violência – patrocinados pelo Estado – que se voltam contra as próprias manifestações e todos os que ousam a se manifestar.
O ato recebeu o sugestivo nome de “Grito da Liberdade – nada vai calar as ruas”. O manifesto de convocação do ato deixa claro que “nosso grito é contra a aplicação das leis de Segurança Nacional e de Crime Organizado contra manifestantes, pela libertação imediata dos presos políticos e pelo direito amplo e irrestrito de livre manifestação, garantido na Constituição de 1988, e que tem sido sistematicamente violado pelo Estado em nome dos megaeventos”.
Lei de Segurança Nacional, Lei do Crime Organizado, libertação de presos políticos, direito amplo e irrestrito de livre manifestação, garantias constitucionais, violação de direitos pelo Estado são expressões e termos que nos levam às tristes recordações de períodos ditatoriais, por demais características da nossa maltratada e injusta história política.
Mas, o que de fato vem ocorrendo? Não estaríamos vivendo o mais longo período de nossa história republicana, sob a égide da democracia e de um regime que nos garante amplas liberdades democráticas?
Em termos: todos nós deveríamos saber que uma democracia real não pode se fundar meramente nas chamadas liberdades formais de organização, manifestação e expressão da sociedade. Se essas prerrogativas – importantíssimas – não estiverem em consonância com os direitos fundamentais que a vida moderna exige, logo estaremos sob um terrível impasse. Impasse decorrente de pressões inevitáveis que tendem a surgir – por melhores condições de vida – e a própria capacidade do Estado em responder às reivindicações que o regime democrático, formalmente, garante.
E quais seriam esses direitos fundamentais exigidos pela vida moderna?
São direitos que se consolidaram como legítimos e necessários, dentro do próprio contexto de desenvolvimento da luta de classes, sob o modo capitalista de produção. São direitos que ao longo da história recente do capitalismo – a rigor, nos últimos cento e cinquenta anos – se impuseram, tanto como exigências funcionais do movimento de acumulação capitalista, como também em consequência de formidáveis e épicas lutas assumidas de forma combativa pelos movimentos em defesa dos trabalhadores.
Formalmente, portanto, esse movimento, com duas componentes de pressão – dos trabalhadores e das exigências do mundo do capital –, conformou uma situação onde, em termos genéricos, o acesso à educação, à saúde, aos transportes, à energia elétrica, à segurança ou à proteção, à infância e à velhice, entre outros, devem fazer parte de um conjunto de direitos, garantido através da ação direta do Estado ou por condições de renda que permitam aos trabalhadores esse tipo de segurança social. Conformou-se, ainda que de forma muito diferenciada por países e com muitas lacunas, uma cultura de direitos básicos que deveriam ser atendidos, no que se convencionou como sociedades civilizadas.
Não sem razão, as constituições de praticamente todos os países, ou suas legislações específicas, bem como a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, procuram – formalmente – garantir que todos tenham acesso a direitos considerados fundamentais para a atual vida em sociedade.
Contudo, há uma enorme distância entre o que é formalmente um direito e aquilo que de fato se torna um instituto real, garantido e efetivo.
No caso brasileiro, esta distância é abissal. A Constituição de 1988 é considerada extremamente avançada, particularmente em seus capítulos referentes aos direitos sociais. Na letra da Lei Maior, os brasileiros, ao consultarem a Constituição em vigor, observarão que os direitos à saúde, à previdência social, à assistência social, à educação, à cultura, ao desporto, à ciência e tecnologia, à comunicação social, ao meio ambiente e à proteção da família, da criança, do adolescente, do idoso e dos índios encontram-se absolutamente garantidos.
Porém, é forçoso reconhecer que esses direitos são escandalosamente desrespeitados de forma acintosa pelo Estado brasileiro, pelas classes dominantes e por seus políticos, gestores governamentais de interesses que não correspondem às necessidades populares, dos trabalhadores e dos demais setores que não integram a elite econômica e financeira. Elite egoísta, sem um projeto próprio para o país como um todo e unicamente preocupada em manter os seus privilégios.
A crise que neste momento atravessamos, decorrente das fortes manifestações populares e da reação repressiva encarnada pelo Estado e por seus agentes, é apenas o reflexo da incapacidade das classes dominantes em responder positivamente às reivindicações que tomam conta das ruas. Esta incapacidade está vinculada ao projeto de “desenvolvimento” por elas abraçado, inclusive com a cooptação de importantes segmentos da outrora esquerda brasileira, seguidoras hoje do chamado lulismo.
Frente a esse verdadeiro impasse, abre-se na conjuntura brasileira um período de muitas incertezas. A vigorosa vaga contestatória que despertou milhões de brasileiros a partir das gigantescas manifestações de junho tenderá a recrudescer. As razões para essa previsão se fundam na agudização das demandas populares e sociais e nesta total impossibilidade de o modelo econômico dar respostas consequentes aos protestos, mais do que justos, exigências de nossa Constituição. A agudização reivindicatória será alimentada pela realização da Copa do Mundo em nosso país, no ano que vem, na conjuntura da disputa eleitoral presidencial que se avizinha e na possibilidade de a própria crise econômica começar a se manifestar no plano da oferta de emprego e na renda real dos trabalhadores.
Enquanto isso, os políticos dominantes – da situação e da oposição de direita – se esmeram em declarações de fidelidade e respeito ao modelo defendido pelos bancos e multinacionais, e ao tal tripé macroeconômico do câmbio flutuante, juros altos e superávit primário. Fingem desconhecer que as raízes da incapacidade do Estado em responder às pressões populares se encontram justamente na insistência desse tipo de política.
Pelo lado, portanto, desses políticos dominantes, o que estará reservado às pressões das ruas será apenas o recrudescimento da repressão. Por isso, pelo lado do movimento popular, o grito de liberdade – especialmente a liberdade de lutar – está na ordem do dia.
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Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.