Roupas penduradas no chafariz da Praça Brasil, no qual as águas não mostram o seu bailado há anos, no coração da cidade Sorriso (Nova Andradina-MS), em frente ao busto do fundador da cidade, homens e mulheres maltrapilhos conversando sobre a vida, sentados no banco da Praça. Alguns não conseguem manter-se em pé. Bêbados, descabelados e “mal-encarados”. Outros conversam em voz alta. Pedem cigarro para quem passa uma moeda para uma pinga ou para comer. Dois brigam entre si e algumas pessoas no outro lado da Avenida Moura de Andrade param para observar.
Os cachorros cuidam da casa cujo telhado é o céu. Próximo dali eles têm tudo de que precisam para sobreviver: circulação de pessoas e mercadorias. A Igreja ao fundo com seu verde sereno e o Centro Pastoral com as janelas harmoniosas fecham a heartland de sobrevivência daqueles seres humanos, que chamamos de “moradores de rua”.
No dia em que fui conhecê-los, acontecia uma quermesse. As barracas brancas estavam de costas para o lar deles. Senhoras e senhores, talvez, queriam se divertir e comer sem infortúnio, “um direito” de qualquer cidadão trabalhador e honesto. Mas, o aglomerado de pessoas e o cheiro bom de comida significavam a forte oportunidade de dormir bem com a barriga cheia, o que para os olhos assustados daqueles que não compreendem tal forma de vida é apenas um incômodo e uma chateação.
Na realidade, ninguém sabe quem são eles, o imaginário coletivo explode em imagens negativas que buscam enquadrá-los: assaltantes, matadores, estupradores, baderneiros, desocupados, preguiçosos. O que amplia, quase sempre, é o medo e receio coletivo em relação aos moradores de rua, que só reconhece-se neles as marcas da promiscuidade e da imoralidade, só os veem pelos óculos da desconfiança.
Nesse dia, querendo quebrar esse círculo vicioso de desinformação, preconceito e expansão do medo, bati na porta no lar dos moradores de rua. Cheguei ao anfiteatro onde eles moram com acompanhado dois amigos curiosos. Fui recebido pelo morador de rua que se identificou como Vando. Ele logo acalmou o cachorro que fazia a guarda do lugar, pois mundo da rua, a segurança é fundamental. Andei pelo anfiteatro, que estava cheio de marcas de fogo, assim como para os homens pré-históricos e como para “nós os normais”, ele é importante para aquecê-los, cozinharem ou esquentarem a alimentação que conseguiram durante o dia. Tinham muitas tralhas em todos os cantos. Três moradores, que continuaram deitados, me disseram oi e ficaram ali me observando.
Tentei saber de onde eram, mas, desconfiados, não me responderam. Talvez, numa próxima visita, eles teriam mais confiança em mim e assim poderiam partilhar suas biografias, as suas histórias de destituição e tragédias sociais. Naquele momento somente havia uma mulher. Alguém disse de longe que eram trabalhadores e estendeu a mão toda calejada. Conversaram conosco tranquilos, nos pediram um cigarro e eu disse que não tinha. Da casa deles avistei a quermesse que desenvolvia tranquila e a beleza do Santuário iluminado destacando seu verde sereno. O cheiro no lugar não era muito bom, fato explicado porque ali não tinha água corrente.
Fui embora carregando muitas dúvidas. Esse primeiro contato fora chocante, não me deu muitas informações sobre eles, mas sim sobre a minha a visão de mundo marcada pelo medo e preconceito. Infelizmente, o meu olhar, mesmo crítico, apenas se prendia a perceber as ausências e distâncias do meu modo de vida, que acho legitimo e correto: sujeira, desordem, desleixo. Na realidade, tudo aquilo me assustava, pois contrariava o meu modo de vida, colocava em suspenso a naturalidade do meu estilo de vida. Uma dúvida me consumia, uma dúvida de certa forma invejosa e inconformista: Seriam felizes morando na rua? Seriam felizes vivendo com pouco? É possível viver com pouco? Estariam realizados, confortáveis e satisfeitos? Não adoeciam vivendo sereno e “na sujeira”? O silêncio dos meus amigos ampliava minha angustia.
Creio, talvez, que sejam essas inquietações, quase existenciais, que colocam em cheque o ideal conforto, luxo e ostentação urbana estimulem o perverso desejo coletivo de desmontagem daquele cenário social, assim como fortalece a vontade deliberada de incompreensão e ignorância compartilhada por alguns grupos sociais sobre aquele modo de viver. O discurso que aponta que a praça deve ser reapropriada por “usos considerados normais” não está ligado ao fato dela deva ser um cartão postal ou aos moradores de rua terem direito à moradia digna, mas sim a presença visível interrogante e incomoda de outro modo de viver na cidade, da sua possibilidade e existência diante dos olhos de todos os cidadãos que circulam pela cidade. É o incomodo do saber e do ver, enfim, a negação da diferença.
O mais trágico ainda é reconhecer que esse modo de viver se afirma apropriando-se e resignificando dos restos, dejetos, rejeitos, resíduos e espaços produzidos e abandonados por nós? Lá estava o coberto velho que foi jogado fora. Lá estava lata que foi considerada inútil. Lá estava o cachorro que foi abandonado. Lá estava o anfiteatro não mais usado, servindo de lar. E assim vai.
Na realidade, uma boa parte dos cidadãos, na qual me incluo nesse grupo também, prende-se ao discurso de que os moradores de ruas enfeiam as cidades, bagunçam o espaço público e envolvem em práticas ilícitas como uma estratégia social para não enfrentarem a questão que o seu modo de vida não é um único que existe na cidade e de que eles não são resíduos e resquícios de uma prática atrasada e antiquada de viver na cidade, mas sim expressão da própria modernidade seletiva e concentradora, que dirige àqueles que não se enquadram nos seus modelos e princípios a estigmatização (negação das autorepresentações), a errância-desterro (o eterno deslocamento/eterna remoção) e a desconsideração social-política
Assim, no anfiteatro vazio de plateia, de peças e discursos encena-se a própria vida urbana, desnuda a sua própria condição que é ser o lugar da coexistência das diferenças. As Pluralidades e diversidades de todas as ordens que marcam as cidades, quase sempre, lidas como problema e estorvo por nós cidadãos ditos normais e pela gestão pública, embebidos pelo projeto uniformizador, padronizador e amordaçador de cidade, constituem a sua máxima expressão. Ela é isso: encontro-desencontro, concentração-desconcentração, confronto-diálogo, conflito-negociação.
Então, o que fazer? Do ponto de vista democrático, seria conviver com as diferentes formas de apropriação e uso do espaço urbano e pensar políticas de assistência social que garantam os direitos civis e sociais dos moradores de ruas, assim como dos “cidadãos ditos normais”. Filosofias e teorias de bons mocinhos, dirão os mais revoltados com a situação e que exigem da gestão urbana respostas mais imediatas.
Infelizmente, a grande maioria da sociedade ávida por solução política envereda-se pela “utopia urbana” da cidade de sem incômodos e transtornos, segura, tranquila e limpa patrocinada pela mídia, pelo marketing urbano e pelo urbanismo estratégico, que, geralmente, negligenciam a impossibilidade de fazer tábua rasa das diferenças que configuram e fazem as cidades.
Essa “utopia urbana” empurra o poder público a trabalhar com o plano do visível-estético, ou seja, “o que o cidadão não vê, ele não reclama”. Remover e desmanchar o cenário social que incomoda e faz o turista e o cidadão reclamarem (perdendo votos) vira a grande política. E aí através ações de militarização de pedaços das cidades (retirar a força os moradores de ruas, humilhá-los, deportá-los para outras cidades, impedir de se aglomerarem) e/ou intervenções urbanístico-sociais (cercas em parques, introdução de novo uso, fechamentos de vãos de viadutos, albergues, etc.) constituem-se na grande política urbana dirigida ao “problema moradores de rua”.
A solução política de remover do campo de visão do “cidadão de bem” ou dos turistas que consomem determinados pedaços da cidade as ditas “paisagens” ou “sujeitos” desagradáveis que roubam a tranquilidade e paz urbanas é desejada e celebrada por alguns setores da sociedade. Entretanto, tal prática significa é a expropriação dos moradores de ruas dos territórios de sua economia de sobrevivência, a negação, mais uma vez, condições de vida digna na cidade, já que aquilo que muitos acreditam que apenas seja apenas “imundices e entulhos” é o próprio meio de sobrevivência dos moradores de rua, é a materialização dos seus recursos e das suas estratégias de sobrevivência. Enfim, é um território de vida e relações sociais, e não um mero depósito de gente necessitada e desocupada.
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*Igor Vitorino da Silva – Historiador e professor de História do Campus Nova Andradina/IFMS.
Igor, que visão que voce tem!
Eu perdido em meus devaneios após ler o seu texto, me pergunto quando foi que fiz esses questionamentos a mim. Texto sóbrio e de perspectivas abrangentes. Muito obrigado por me libertar de mais uma bolha, na qual vivi por muito tempo. A partir de agora, tentarei ao máximo dar a devida atenção a essas pessoas, que são tão cidadãs quanto eu ou voce!
ATT: Maycon Sousa