Rodolfo Salm*, Correio da Cidadania
A prestigiada revista britânica ‘The Economist’ publicou, na edição de 4 de maio de 2013, um artigo enganador sobre as hidrelétricas na Amazônia, com ênfase em Belo Monte: “The rights and wrongs of Belo Monte” (Os acertos e erros de Belo Monte). O texto tenta dar a impressão de abordar parcimoniosamente os “dois lados” de uma “questão complexa”, mas na verdade defende descaradamente nosso modelo energético ultrapassado e devastador. Mais do que isso, advoga pela construção de novas barragens com grandes reservatórios na Amazônia, o que redundaria no aprofundamento dos seus impactos ecológicos e sociais. O truque começa no título que sugere que o projeto Belo Monte tem um lado bom e outro ruim, enquanto que, na verdade, tudo está errado em Belo Monte.
Mas, afinal, quais seriam os aspectos positivos desta obra? “Visite a área e Belo Monte hoje se parece imparável e muito menos danoso ao meio ambiente do que alguns de seus críticos advogam”, observou o autor. Mas como que Belo Monte, tão precocemente, já poderia parecer menos destruidor do que previsto? Os sítios de trabalho da obra de construção da barragem estão gerando uma devastação completa. E não é verdade que já eram apenas áreas devastadas antes da obra. Extensas florestas com castanheiras centenárias (árvores protegidas por lei) já foram derrubadas. Mas não é simplesmente dessa devastação que falavam os críticos, mas de um processo muito mais amplo, longo e complexo. O fluxo natural do rio ainda não foi sequer totalmente bloqueado. Então, apesar de o nível do Xingu estar mais alto do que geralmente estaria nessa época do ano, retardando o aparecimento das praias, qualquer pessoa bem informada e bem intencionada sabe que o impacto do seu futuro barramento ainda nem de longe pode ser sentido. Aliás, as áreas a serem alagadas ainda nem foram desflorestadas.
Acima de tudo, o impacto da explosão populacional nessa região sensível da Amazônia só se fará sentir quando as obras acabarem e as hordas de desempregados partirem literalmente para a pilhagem da floresta a fim de sobreviver. Então, não há a possibilidade de se dizer que Belo Monte tem causado menos impacto do que o previsto. O comentário lembra até a piada do sujeito que cai do alto de um prédio e, ao passar pelo terceiro andar, já perto do chão, pensa: “até aqui tudo bem!”.
Por um lado, é observado no texto da revista britânica o fato de que os canais que desviarão a maior parte do fluxo natural do rio Xingu ao longo da Volta Grande evitarão o alagamento das terras indígenas naquela área. Mas é ignorado que a grande tragédia para aqueles índios, possivelmente ainda maior do que seria o alagamento, será o fim do rio que sempre lhes deu sustento ao passar em frente de suas aldeias. Com o desvio da maior parte da água, o rio se transformará em sua maior parte em uma sequência de lagos abandonados, criadores de mosquitos e garimpos auríferos, que serão a desgraça dos índios e demais moradores da região. Em outra passagem da reportagem, o autor observa que: “a Norte Energia separou 3,9 bilhões de reais para o pagamento de ações de mitigação e compensação. Os construtores devem construir escadas para peixes, um translocador de barcos para manter o rio navegável, casas para 8000 famílias, escolas, infraestrutura de saúde, redes de esgoto e muito mais”, completando maliciosamente: “para ativistas em Altamira e os índios locais, isso não é o bastante”.
Isso é enganação pura. Qualquer pessoa de boa fé que venha à cidade investigar o assunto saberá imediatamente que todas essas ações são fictícias. Praticamente nada tem sido feito para amenizar os impactos de Belo Monte sobre a cidade que hoje vive o colapso em seu já precário sistema de saúde. Nenhum hospital foi construído. Um deles, que antes servia a população, foi reservado para trabalhadores da barragem. O acesso à educação também é precário e o trânsito ficou caótico. As escadas de peixes também não funcionarão porque seus “usuários”, peixes de corredeiras, serão prontamente devorados por piranhas assim que adentrarem o ambiente do lago. Ademais, pesquisadores já demonstraram a inutilidade destas estruturas para as populações de peixes migratórios. Elas simplesmente não funcionam bem. E o serviço de translocação dos barcos tem feito grandes estragos sobre a estrutura física das embarcações.
De perto, Belo Monte é um lixo, mesmo aos olhos mais “engenheiros”. Os construtores são tão porcos e desleixados com a infraestrutura mínima da cidade que, no próprio acesso ao seu “quartel general”, não há qualquer iluminação e nem sequer uma pintura de faixa no chão que ajude minimamente a evitar acidentes. Na porta de seu escritório central, o que se vê são buracos, lixo espalhado e trânsito caótico. Se eles fazem isso bem no caminho que são obrigados a percorrer todos os dias, imaginem como deixam o resto da cidade.
E o que falar da proliferação dos prostíbulos, alguns com moças trabalhando em condição análoga à escravidão, conforme relatos publicados recentemente nos grandes jornais, dentro da área diretamente controlada por Belo Monte, conforme denúncia do Ministério Público Federal? As vítimas foram trazidas de van de Santa Catarina para Altamira, fechadas em quartos precários com trancas do lado de fora e vigiadas para não saírem do local. O Consórcio Construtor de Belo Monte tentou se eximir da culpa dizendo não ter responsabilidade sobre o funcionamento do “cabaré”. Mas é necessário passar por duas guaritas controladas por eles para se ter acesso ao local. E só entra e sai quem eles autorizam. Os trabalhadores, construtores da barragem, vivem sozinhos, longe de suas famílias, e precisam de sexo fácil. Como se resolve isso? Simples assim. Numa época em que o tráfico de seres humanos e a escravidão são escândalos de marca maior e usualmente recebem destaque da mídia, só isso colocaria em xeque a obra. Mas vale tudo para Belo Monte.
O texto da The Economist cita o trabalho do professor Philip Fearnside, do Instituto Nacional para a Pesquisa na Amazônia (INPA), que compara os lagos das hidrelétricas na Amazônia a “fábricas de metano”, um “gás do efeito estufa muito mais poderoso” que o CO2. Mas associa o debate a desastres “do passado” no que se refere às hidrelétricas na Amazônia, como o lago de Balbina, formado nas proximidades de Manaus na década de 1980. Sob esse critério, Belo Monte seria uma usina “altamente eficiente”, como Itaipu. Mas faz questão de ignorar a preocupação do professor Fearnside, importante crítico das barragens no Xingu, de que as futuras barragens que serão construídas ao longo do rio Xingu, com o desenvolvimento do sonho dos governos militares da década de 1970, da sequência de várias barragens no Xingu, que gerariam os tais 20.000MW, gerariam uma quantidade colossal de metano, que contribuiria em muito com o envenenamento da atmosfera do planeta. Nem poderia deixar de ignorar, pois um dos grandes pontos defendidos no artigo é que o Brasil estaria perdendo uma grande oportunidade ao deixar de fazer grandes reservatórios na Amazônia. Ao invés disso, seu autor prefere citar a bobagem da resolução governamental de que Belo Monte seria a única hidrelétrica do Xingu. No momento necessário, uma simples canetada da “presidenta” muda a norma. Isso é fácil para um governo que já alterou por Medida Provisória, em nome da construção de barragens, o formato de Unidades de Conservação.
“Tendo gasto pesadamente para fazer o terceiro maior projeto de engenharia elétrica do mundo, o Brasil corre o risco de ter um retorno pobre do seu investimento de 14 bilhões de dólares”, é o subtítulo da matéria. Que Belo Monte sozinho é um fiasco econômico não é novidade e todo mundo sabe. No período de debates que antecedeu a construção da obra, os críticos de Belo Monte cansaram de repetir isso. Mas o jornalista, ao invés de lembrar nossos alertas para essa questão, preferiu, fantasiosamente, atribuir a nós a suposta previsão de que, imediatamente começadas as obras, toda a natureza da região imediatamente se evaporaria como que por mágica.
Não surpreende que o jornalista da The Economist não tenha qualquer sensibilidade quanto ao meio ambiente, mas mesmo na sua área está claro que ele não fez o “dever de casa” direito. De todas as falhas do texto, a mais grave para uma revista de economia é a análise pueril sobre a necessidade de Belo Monte: “com dezenas de milhões de cidadãos saindo da pobreza, o Brasil pode satisfazer a demanda apenas se adicionar cerca de 6.000MW todos os anos ao longo da próxima década à sua capacidade instalada de 121.000 MW”. Para quem conhece minimamente a questão, e o pessoal da The Economist está ciente disso, na verdade, não é para carregar as baterias dos smartphones, e funcionar os DVDs e os ventiladores da nova classe média brasileira, que estão sendo gastos tantos bilhões na construção de tantas hidrelétricas na Amazônia. Essa é a mentirinha favorita da grande imprensa brasileira para convencer o povão de que as hidrelétricas na Amazônia são necessárias. Na verdade, esse investimento todo é para a mineração eletrointensiva da região. Para converter bauxita em alumínio, não para a nossa indústria, mas para ser exportado, com energia barata embutida, para atender à demanda do mercado internacional.
Dizer que o Brasil tem sorte em poder explorar o imenso potencial hidrelétrico da Amazônia equivale a dizer que tivemos “sorte”, desde o descobrimento em 1500, de ter imensas florestas de pau-brasil, que foram devastadas para a exportação de corante vermelho, ou uma imensa Mata Atlântica, a ser devastada para as monoculturas canavieira e cafeeira baseadas no latifúndio e na mão-de-obra escrava-negra.
A mensagem central da revista para os investidores que a consultam para se informar sobre o mundo é de que Belo Monte é inevitável. O resto é bobagem para passar o tempo do leitor na cadeira do avião, com o recurso, já batido, de tirar barato com a cara do diretor de cinema hollywoodiano James Cameron, que comparou os construtores de Belo Monte aos vilões de seu blockbuster Avatar. Também veio a Altamira a atriz Sigourney Weaver, que enfrentara o monstro de Allien na pele da tenente Ripley. Mas que, diante do Belo Monstro, preferiu recuar e nunca mais voltou. O Exterminador do Futuro, Arnold Schwarzenegger, também apareceu, mas amarelou. Infelizmente, apesar de toda lambança, sobre a inevitabilidade de Belo Monte, não dá para dizer que o artigo da The Economist está errado.
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*Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
Segundo ele, o período com mais ventos e produção de bagaço de cana, no meio do ano, coincide com a estiagem na maior parte das hidrelétricas do país. “Com mais represas, seria possível aproveitar a eletricidade abundante gerada pelos cata-ventos e pelas usinas de cana para estocar água nos reservatórios”, diz. “Precisamos de mais dessas represas na Amazônia.” Essa questão ganhou importância agora que o país está projetando as obras para aproveitar o maior potencial hídrico disponível. “Se o mundo começar a restringir as emissões ligadas às mudanças climáticas, teremos desperdiçado a oportunidade de gerar mais energia limpa e barata,” diz Marcos Costa, vice-presidente de energia da Alstom, empresa que fabrica equipamentos para usinas com ou sem reservatório.