Orlando Zaccone: autos de resistência legitimam extermínio como Política de Estado

No Justificando

Em tempos de chacina em São Paulo e de altos índices de letalidade da polícia brasileira, cada vez mais Orlando Zaccone atrai pessoas para ouvir o que tem a dizer. No Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o auditório ficou lotado para que falasse sobre a política de Estado que estimula o extermínio, muito em função da atual guerra às drogas.

Em entrevista exclusiva ao Justificando, o Delegado de Polícia explicou como os autos de resistência se tornaram “o carro chefe da polícia” para matar dentro da lei, com a chancela do Poder Judiciário.

A grande pergunta do auto de resistência: não como a polícia agiu, mas quem ela matou. Então, completada a figura do inimigo, isto é, o traficante de drogas, e esse fato ocorrendo dentro de favelas, de guetos, isso é colocado na escrita dos promotores de justiça como elementos a justificar a morte.

Além disso, Zaccone fala sobre como a letalidade policial diminuiria brutalmente caso porte, consumo, produção e venda das drogas fossem legalizadas.

A legalização desconstrói esse inimigo público que é o traficante. Ninguém vê o Presidente da Ambev como uma pessoa perigosa, que produz uma droga que gera letalidade, violência, mas que é tido como um efeito secundário de toda positividade que existe no álcool. Isso é visto nas propagandas.

Veja como ficou abaixo:

Justificando: Zaconne, aqui em São Paulo, recentemente, ocorreu a Chacina cometida pela polícia militar, com 18 pessoas que foram mortas numa madrugada em Barueri. Esse é um método de extermínio na atuação da polícia, mas é a única forma como a polícia mata?

Orlando Zaccone: Não, nós temos índices altíssimos de letalidade a partir de ações policiais no Brasil. Recentemente, saiu uma pesquisa que as polícias matam no país cinco pessoas por dia. Então, é uma política criminal de derramamento de sangue a conta gotas. Só que existe uma distinção entre essa grande letalidade e as chacinas.

As chacinas são um procedimento que existia desde os anos 50. No Rio de Janeiro e em São Paulo ficaram famosos os esquadrões da morte. E, durante a ditadura militar, no antigo estado da Guanabara, a então Secretaria de Segurança lançou uma nova forma jurídica para contemplar ações letais da polícia quando em serviço, dando o nome de auto de resistência.

Então, vamos dizer assim: o grande carro chefe dessa letalidade tem uma forma jurídica que é distinta da chacina, pois não é apresentado como uma ação ilegítima da polícia.

Just: Para entender melhor, o que é e como funciona um auto de resistência?

OZ: O auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa.

Ou seja, essa letalidade do auto de resistência é contemplada dentro do Direito, ao contrário das chacinas e dos grupos de extermínio. Tanto é que em uma das primeiras reportagens no Rio de Janeiro em 1968 no jornal Última Hora se refere ao primeiro auto de resistência como “O Esquadrão da Vida”.

Então há duas formas de violência policial: uma realizada nos subterrâneos do Sistema Criminal, como são os esquadrões da morte. Não pense você que não participam operadores do mundo jurídico e do mundo político nessa forma. Nós já temos revelado nos estudos do esquadrão todos os vínculos desses grupos policiais com o poder político, poder jurídico, contato com juízes. Mas isso se dá no subterrâneo.

Além desse subterrâneo, há a outra forma que aparece nos autos de resistência, onde esses operadores jurídicos e políticos continuam atuando de uma forma clara, explícita, sem ocultar nada. É apresentada uma ação policial letal e aquilo será contemplado com uma morte dentro do Direito, com a construção da legítima defesa, tese que estudei no Doutorado em Ciência Política na UFF, que resultou no “Indignos de Vida: forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”.

Nesse livro, fiz um estúdio de trezentos autos de resistência que foram arquivados e eu fui ver como se fundamentava a decisões de arquivamento dos promotores de justiça.

Just: E como se fundamentava?

OZ: O fundamento basicamente tem a grande pergunta do auto de resistência: não como a polícia agiu, mas quem ela matou. Então, completada a figura do inimigo, isto é, o traficante de drogas, e esse fato ocorrendo dentro de favelas, de guetos, isso é colocado na escrita dos promotores de justiça como elementos a justificar a morte.

Just: O que isso significa?

OZ: Significa dizer que hoje existe uma política pública, uma política de Estado – não é uma política de governo, porque muda governo, muda partido e essa letalidade se mantém. Existe essa política de Estado, a qual contempla o extermínio de determinadas categorias de criminosos considerados perigosos no ambiente social, que recebe apoio de parcelas da sociedade – muitas vezes parte da mídia apoia.

Às vezes você liga o Jornal Nacional e vê execução de “traficantes”, entre aspas. Às vezes uma perseguição de um sujeito em fuga e a polícia, em cima de um helicóptero, atirando vai para o telejornal e ninguém fala em exexução, porque é visto como uma ação legítima. Então, o que se discute no Brasil não é a violência policial, mas a quem ela se dirige. A pergunta que é feita é: “Mas era traficante ou era pedreiro?”, “Era traficante ou era dançarino?”.

Dependendo da resposta, ou o policial vai ser promovido, ou ele vai para a cadeia, o que é uma situação muito precária e vulnerável para o policial, porque ele é instado a entrar numa guerra onde ele tem um alvo definido, onde existe toda uma legitimidade para que ele execute aquele alvo e, se por um acaso, ele errar o alvo e acertar um alvo errado ele vai ser… (faz um gesto de corte com a mão).

Just: Amarildo, por exemplo…

OZ: A grande discussão que se colocou no ambiente social, jornalistas, amigos, meus pais me procuravam para perguntar:”Amarildo é traficante?”. Parece que a resposta a isso era a resposta para o desaparecimento dele, se um desaparecimento dentro da lei, ou um fora da lei.

Just: Na prática, o que conseguiria acabar com os autos de resistência?

OZ: Hoje tenho a convicção que [o que] pode acabar com os autos de resistência é a legalização da produção, consumo e comércio de drogas. Porque essa violência é legitimada numa guerra que é criada pelo proibicionismo. Ninguém está guerreando no mercado de cerveja – a guerra ali não se estabelece com fuzis, acontece de outra forma. É uma guerra que se dá na bolsa de valores, no mercado financeiro. Ninguém está tomando conta de vinícula com fuzil na mão, as farmácias também não.

Então, a legalização desconstrói esse inimigo público que é o traficante. A diferença, e isso está no filme Cidade de Deus, é que se as drogas forem legalizadas o Zé Pequeno iria ganhar o prêmio de empresário do ano. O que significa dizer que a diferença entre o traficante e o empresário é a legalização. Ninguém vê o Presidente da Ambev como uma pessoa perigosa, que produz uma droga que gera letalidade, violência, mas que é tido como um efeito secundário de toda positividade que existe no álcool. Isso é visto nas propagandas.

O viagra mata e a maconha nunca matou ninguém. Mas o viagra é permitido e a maconha não. “Mas 0 viagra busca melhoria sexual, prazer”. Quem usa maconha também está buscando isso. Então não existe, nessa distinção arbitrária entre drogas lícitas e ilícitas, como fundamentar, pelo menos dentro de um Direito Penal Democrático, uma racionalidade para a proibição.

Just: O que você acha que vai acontecer se as drogas forem legalizadas?

OZ: Nós da Leap (Law Enforcement Against Prohibition, organização internacional a favor da legalização das drogas) defendemos [a legalização] da produção, comércio e consumo de todas as drogas. Isso não significa que as drogas vão entrar no mercado de qualquer maneira, porque as drogas lícitas são controladas. O álcool não chega no mercado de qualquer forma, aliás algumas formas são proibidas, como o absinto. Isso que vai acontecer com as drogas proibidas: serão regulamentadas para chegar ao mercado de uma forma que o Estado autorize; as que não estiverem no padrão serão naturalmente afastadas pelo próprio mercado, pois o efeito das drogas é muito similar. Vai ficar embriagada bebendo absinto, ou bebendo vodka.

Quem busca o efeito da droga vai buscá-lo num ato legal que será evidentemente menos lesivo pelo controle que a sociedade e o Estado terão sobre essas drogas. E a gente tem que entender que o que reduz o consumo de drogas não é a proibição, muito pelo contrário. O que reduz o consumo de drogas são políticas públicas.

O tabaco é a droga que mais redução de consumo teve no Brasil e é a única droga que você pode observar a implementação de uma política pública, restringindo propaganda em todo veículo de comunicação. É um absurdo que, no Brasil, termos propaganda do álcool, principalmente de cerveja, sem restrição sequer de horário. E quando você tem um projeto de lei, no Congresso, para restringir o horário, por exemplo apenas a partir das dez horas da noite, não passa porque a Ambev é a maior financiadora dos partidos políticos. E os mesmos parlamentares que votam contra a restrição da propaganda do álcool na TV, votam contra as legalizações das outras drogas. Se isso não é hipocrisia, não sei então o que é.

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