Pesquisas mostram que polícia prende. E os juízes também, por Marcelo Semer

Em Contracorrentes/Justificando

Duas pesquisas recentemente publicadas consolidaram dados assustadores sobre o sistema penal e ajudam a desfazer alguns mitos, entre os quais de que o Brasil é o país da impunidade.

Pelos números obtidos, é possível constatar que o encarceramento continua em grande ascensão no país, com 74% de crescimento no número de presos nos últimos sete anos. E que, em desconformidade com o senso comum que muitos incautos e populistas propagam, a polícia prende e os juízes não soltam.

O Mapa do Encarceramento, patrocinado pela Secretaria Nacional da Juventude, e coordenado pela socióloga Jaqueline Sinhoretto, calcula em 515.482 o número da população encarcerada no Brasil até o final do ano de 2012, um acréscimo em mais de duzentos mil presos em relação a 2005.

As divisões por critérios etários e de raça não chegam a ser nenhuma novidade: mais de 60% dos presos são negros (prende-se 1,5 vez o número de brancos) e uma parcela próxima a essa é composta por jovens. Quanto mais se prende, mais jovens e mais negros lotam as cadeias.

A pesquisa faz ainda uma triste constatação, em combinação com o Mapa da Violência: o espectro predominante das vítimas de homicídio no país é exatamente o mesmo dos encarcerados, numa espécie de sobreposição de sanções.

Os crimes contra a vida, aliás, que costumam ganhar muitas manchetes e discursos demagógicos na segurança pública, são quase irrelevantes no conjunto da população prisional. Mal representam 12% dos presos, enquanto aqueles resultantes da somatória de crimes patrimoniais com os de entorpecentes atingem o patamar de 75%.

Nada de espantar, combinando-se o fato de que a propriedade é o alvo preferencial da tutela penal e que a expressiva maioria das denúncias criminais vem baseada em prisões em flagrante da Polícia Militar – em proporção muito destacada em relação às investigações da Polícia Civil.

Oriunda do Projeto Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, a Pesquisa “Excesso de Prisão Provisória no Brasil”, coordenada pelo professor Rogério Dultra dos Santos, analisou a situação das prisões provisórias, que atinge um contingente de cerca de 40% dos habitantes do sistema carcerário, ainda sem decisão definitiva.

O que esta pesquisa demonstra, por intermédio de um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico, é que a-) um expressivo percentual das prisões em flagrante são mantidas pelos juízes (convertidas em prisões preventivas) e b-) a prisão preventiva se estende normalmente por meses e, às vezes, até por anos.

Os números são provenientes de levantamentos realizados em dois Estados (SC e BA) entre os anos de 2008 e 2012, mas é razoável supor, pelos altos índices de prisão provisória país afora, apontados também pelo Mapa do Encarceramento, que não se distingam muito de outras regiões.

Computados os três crimes analisados, a manutenção pelos juízes das prisões em flagrante foi de 84,1% na Bahia e 87,7% em Santa Catarina; 93,2% nos dois Estados se considerado apenas o tráfico de entorpecentes; e atinge 100%, ou seja, todas as prisões em flagrante apuradas na pesquisa, nos casos de roubo em Santa Catarina.

Há várias outras conclusões coincidentes entres as pesquisas, como a carência de assistência jurídica no país, representada pelo enorme déficit de defensores públicos. Os Estados ainda estão muito distantes da realidade determinada pela emenda constitucional 80, que obriga a presença de defensor público em todas as comarcas no prazo de oito anos.

Goiás, por exemplo, que aparece em branco na pesquisa, pela constituição tardia da Defensoria, ainda hoje conta com um número irrisório de profissionais.

O crescimento vertiginoso das prisões por tráfico de entorpecentes (sessenta mil presos a mais nos últimos sete anos) sem qualquer diminuição do consumo ou do próprio comércio demonstra o retumbante fracasso da guerra às drogas. E o fato de que quase 20% dos presos tenham recebido penas inferiores a quatro anos pode indicar também que as penas alternativas estejam sendo subutilizadas.

Fato é que prender não tem ajudado nada a reduzir o número de crimes e que a estratégia de enrijecer o direito penal tem se mostrado não apenas equivocada como sensivelmente prejudicial. Como o crime também brota das prisões, com o fortalecimento das facções, o direito penal tem proporcionado na verdade um enorme dano reverso.

O Mapa do Encarceramento aponta, ainda, um número de presos 90% superior ao de vagas nos estabelecimentos penais –a superlotação é uma das causas, do tratamento degradante que a população carcerária sofre. Sinal de que a preocupação com o descumprimento da lei –no caso a de execuções penais- também é fortemente seletivo.

O quadro em questão, o excesso de prisões e a forma subumana de suas condições, foi inclusive, objeto de uma ação recente movida pelo PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal (ADPF 347), buscando a declaração do “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário. Parecer do jurista Juarez Tavares que a municia sugere que as precárias condições do cárcere deveriam provocar uma redução drástica das prisões preventivas e repercutir em abatimento das penas.

O mais grave das pesquisas, todavia, é o fato de elas serem completamente ignoradas por quem tem o poder de fazer as leis ou mesmo de interpretá-las.

No caminho da proposta de redução da maioridade penal, as estatísticas foram esquecidas, preteridas pelo sensacionalismo midiático que escolhe algumas poucas ações para colocar em destaque incessante.

Não há qualquer estudo sobre o impacto das propostas, seja na reeducação dos adolescentes seja no combalido sistema penitenciário. O importante é garantir uma marca de simpatia para as próximas eleições.

A impunidade dos adolescentes é, aliás, outro mito derrubado, considerando que a restrição à liberdade também se mostra crescente nas sanções das Varas da Infância, alcançando 100 adolescentes em internação ou semiliberdade no conjunto de cada cem mil habitantes. Um sistema penitenciário que já ultrapassou a fronteira da exaustão, todavia, parece lhes esperar na próxima esquina.

De desprezo pela ciência ao endeusamento do senso comum, de desconhecimento da realidade à inimputabilidade das consequências, o populismo penal ganha enorme espaço na pauta reacionária.

É bem possível que em um futuro não muito distante, vamos olhar até com nostalgia a estes números de encarceramento que hoje tanto nos impressionam.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

Destaque: Foto do site Justificando.

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