Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
Vez ou outra me debruço sobre alguns textos que decidem o fim do jornalismo nesse nosso maravilhoso século tecnológico. O sítio “observatório da imprensa”, o qual recomendo, é um bom espaço para garimpar as novidades. Muitos estudiosos apontam que as novas tecnologias agora propiciam que, pelo menos, três bilhões de pessoas em potencial digam algo sobre o que acontece no mundo ou na vila. São os que chamam de “conectados”, ou seja, os que de alguma maneira conseguem se ligar a rede mundial de computadores. Com base nessa premissa, como num silogismo simples, concluem então, alguns, que não há mais a necessidade do jornalista. Ou, numa conclusão às avessas: se todos podem falar, todos são jornalistas. Seja lá como for, é o fim do jornalismo, dizem. Rumino isso com muita paciência e, aqui, teço três singelas considerações.
1 – A internet é uma força real de informação
Sim, isso é um fato. Ainda que tenhamos quatro bilhões de pessoas sem acesso, não se pode negar a força que tem a rede mundial de computadores. As informações transitam em tempo real por qualquer parte do mundo. Podemos saber de coisas que aconteceram agora mesmo na Islândia, na China, no Paquistão, em Belize, na República Dominicana. A mídia convencional, inclusive, já se pauta pelas postagens mais exóticas ou “bombadas” da net. Mas, isso balança o conceito de jornalismo? Seria o jornalismo isso? O simples repasse de informações em tempo real? Diz o escritor Fernando Moraes numa entrevista ao jornal Notícias do Dia (11.06), falando sobre essa plataforma: “Internet é muito mais imagem. Um exemplo disso foi o assassinato do [Muammar al-]Gaddafi, linchado publicamente. Ali em volta, estavam pessoas com celulares na mão filmando tudo e, minutos depois, aquilo estava no planeta inteiro. No dia seguinte, não tinha nenhum jornal do mundo que desse uma do que a que você viu com os seus olhos. A imprensa convencional já não consegue mais acompanhar a internet”.
Permito-me concordar e discordar. Moraes está certo quando diz que a informação crua das cenas de Muammar sendo linchado e morto foi sem concorrência. Mas, apenas para o quesito informação. Jornalismo é mais que isso. Imagine que a pessoa que vê as cenas nunca ouviu falar de Gaddafi. Que depreenderia daquilo? Violência, tortura, assassinato. Mas, por quê? Quem era aquele homem, sua história toda, e o que levou aquela gente àquilo? Isso faz o jornalismo. Não necessariamente o jornalista. Pode ser qualquer um. Só que esse um terá de conseguir passar, para além da imagem crua, a atmosfera universal daquele fato, como bem já ensinou Adelmo Genro Filho no seu “Segredo da Pirâmide”. O contexto, a história, as causas e as consequências. Não creio que os três bilhões de internautas queiram produzir informação assim, com esse nível de complexidade. No geral querem passar informações banais sobre suas alegrias, suas vitórias, as belezas que contemplam.
Nesse sentido, a rede mundial, que é, sem dúvida, uma plataforma incrível e potencializadora, não necessariamente produz informação de qualidade, que seja de interesse público, com toda a profundidade que uma mediação jornalística pode dar.
2 – A internet matou o jornalismo
Discordo totalmente. Quem matou o jornalismo foram aqueles que, seduzidos pelo sistema capitalista, há 300 ano, decidiram se apropriar desse fazer – que é a análise do dia – para vender suas mercadorias. Foi quando o jornalismo passou a ser mera ideologia, propaganda, espaço de expressão de interesses de grupos específicos ligados à classe dominante. Noam Chomski, no seu clássico “Guardiões da Liberdade” mostra, com bem mais propriedade do que eu, o que podem fazer um governo ou os grupos de poder para, usando a “forma” jornalismo, que vem carregada de conceitos como imparcialidade, neutralidade e objetividade, manipular a opinião pública a seu bel prazer contra aqueles que são eleitos como “inimigos”.
Adelmo Genro Filho ensina o que é o jornalismo: uma forma de conhecimento que narra a partir da singularidade de um fato qualquer, mas apresentando elementos que levem o leitor/ouvinte a compreender a universalidade daquele momento único. Ou seja, usando a morte de Gaddafi como exemplo, uma matéria jornalística teria de, mostrando as cenas, apresentar ao espectador as causas que levaram àquele singular minuto. O jornalista teria de apresentar uma análise sobre aquilo. Uma análise. Não desprovida de subjetividades ou parcialidades. Mas, uma análise, um ponto de vista, baseado em fontes confiáveis. Que poderia depois ser confrontado com outros.
O jornalismo não é coisa fácil de se fazer, talvez por isso as pessoas vivam matando o coitado. Exige do jornalista conhecimento profundo sobre a realidade, conhecimento de história, pensamento crítico. Exige cuidado com a língua, experiência narrativa, domínio sobre o texto. O jornalismo exige a busca de várias fontes, a checagem e a rechecagem da informação, exige faro, bom senso, cuidado com a vida do outro. Jornalismo produz histórias que contam do humano e, nos fatos mais rasteiros do cotidiano, preciso apontar a universalidade da existência, desenhar a atmosfera totalizante na qual está mergulhada o fato. Ah, coisa complexa e trabalhosa.
Então, não culpemos a indústria tecnológica pelo fim do jornalismo. Ela é só mais uma faceta do sistema capitalista que tudo que toca transforma em lucros para uns poucos. E, com seu poder – que chega às raias do vício – nada mais é do que um terreno fértil para a manipulação e o engano, como já foi o rádio e a televisão. Quem de nós, mesmo os mais experientes, já não foi enganado nessa teia desesperante que são as redes sociais?
É certo que o mundo conectado também aliena e esconde. Nem mesmo essa ideia, aparentemente generosa, do inventor do Facebook, o Mark Zuckerberg, de garantir internet para os pobres, acompanhada do face gratuito, está desprovida de interesses. É tudo uma grande enrosco para que as empresas de transmissão de dados sigam com seus lucros astronômicos. Nenhum empresário, do tipo “tudo por dinheiro”, como parece ser o caso desse rapaz, dá almoço grátis. Coisas bem tenebrosas estão por trás, como a perda da privacidade, a vigilância universal. Isso nos ensina a observação cotidiana das ações dos capitalistas no mundo.
3 – Onde está o jornalismo?
Então, se não é a internet que mata o jornalismo, onde ele anda? Pois essa é uma questão importante. Mostra que mesmo nos jornais, emissoras de rádio, emissoras de TV e portais de notícia, o jornalismo já foi assassinado. Quais são os fatos que a gente vê na TV? E como é a abordagem? Qual o interesse público real? O que dizem os jornais? Está vivo o jornalismo na mídia tradicional? Faz-se, por acaso, nos meios alternativos?
Pois no meu livro “Em busca da Utopia: Caminhos da reportagem no Brasil, dos anos 50 aos anos 90” fui atrás do jornalismo. Queria ver se as reportagens feitas nas revistas de informação, cada dia mais voltadas para os textos curtos, sem contexto, sem autoria, ainda viviam. Pois descobri que sim, viviam. Eram pequenos oásis de belezas, preciosos oásis de jornalismo, nas páginas recheadas de lixo, ideologia e propaganda. Ali estavam porque vinham pela mão de criaturas que sabiam como escrever um texto. Jornalistas que faziam jornalismo. O jornalista-autor, como bem caracteriza a professora Roseméri Laurindo no seu importante livro “As três dimensões do Jornalismo”.
Assim que o jornalismo não é coisa que possa morrer enquanto houver alguém – um jornalista – que se disponha a praticá-lo como se deve, para além da marca da empresa, dos interesses dos poderosos ou da propaganda de esquerda.
O jornalismo, bem disse Adelmo Genro Filho, pode ser usado para manipular pela direita ou pela esquerda. Mas ele pode também ser uma prática libertadora, emancipadora. Se a pessoa que vai narrar um fato tiver a delicadeza de ouvir vários lados, observar o entorno, conhecer a história, levantar as causas, apontar as consequências, ainda que determine muito bem a sua posição diante do fato, certamente oferecerá ao leitor uma “fina iguaria”, como insistia Marcos Faerman, um repórter da boa cepa.
O jornalista é um ser que toma posição, e narra a vida no seu contexto. É esse ser que precisa de atenção, formação e cuidado. O jornalismo não é um ente, é só uma prática humana. Quem o define somos nós, que o fazemos. E enquanto houver um só que se debruce sobre os fatos singulares buscando a totalidade da vida, o jornalismo viverá. Seja no rádio, na revista, na televisão, no jornal ou na internet. E ele viverá, porque é da condição humana essa sede de saber.
A informação pura e simples não é coisa que se despreze. Para uma mãe com o filho febril, faz toda a diferença saber se o médico está no posto de saúde ou não. Mas para quem quer compreender o mundo na sua universalidade isso não pode bastar. Há que se compreender o mais possível acerca do fato. Há que se oferecer uma análise crítica sobre as informações. A vida na sua imanência é por si só uma informação preciosa, mas nós, jornalistas-autores, temos por obrigação ética narrá-la no contexto histórico de cada personagem.
O jornalismo vive, e tal qual a fábula da princesinha que mesmo dormindo sobre centenas de colchões sentiu um grão de ervilha, assim, nós, que respiramos texto/contexto, sabemos reconhecê-lo quando ele aparece, ainda que escondido nas grandes empresas ou nas pequenas experiências alternativas.
Quem tiver olhos para ver, que veja!