Cândido Grzybowski*, Ibase
A globalização tornou o mundo muito mais interdependente nas últimas décadas. O que se passa em qualquer parte do mundo nos afeta de algum modo, assim como o que fazemos localmente pode ter impacto em lugares e povos muito distantes. Pelo bem e pelo mal, tomamos consciência de sermos, em nossa grande diversidade, uma mesma comunidade humana. O próprio conceito filosófico de humanidade adquire sentido político hoje. As novas tecnologias de informação e comunicação nos dão a sensação de estarmos lá e seremos parte no momento mesmo em que algo acontece. Mas é um sentido e uma visão de humanidade negada que prevalece, apesar de toda a publicidade que coloniza as nossas próprias cabeças.
Diante das contraditórias relações intra e intersociedades e povos; de guerras simultâneas em vários lugares; dos dramas concretos vividos; de situações de exclusão no planeta humano, que se urbaniza e cria mais e mais favelas, mais e mais migrantes banidos; das vergonhosas injustiças e desigualdades sociais escandalosas; da destruição das próprias bases naturais da vida, em nome da acumulação de riquezas de poucos emerge uma humanidade de destino comum, mas partida, porque direitos fundamentais são negados. No entanto, a consciência de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, nos une e nos dá sentido. Revela uma possibilidade, hoje ainda impossível dada a globalização econômica a serviço das grandes corporações econômico-financeiras. A realidade é cruel e, no contexto da globalização, pode ser ainda pior. A cada dia convivemos com situações humanamente injustas e ambientalmente destrutivas, ampliadas pelo “cassino global” que domina o nosso planeta, bem humano comum maior e único.
Afirmo categoricamente: não dá para garantir direitos humanos, todos os direitos humanos, a todos os seres humanos do planeta Terra sem discriminações, com este paradigma civilizatório radicalizado pela globalização. O problema não é a falta ou o pouco desenvolvimento econômico. O problema está nele mesmo. O desenvolvimento só existe com crescimento, impulsionado por poderosos interesses que visam, acima de tudo, acumular riquezas nas mãos de poucos e não garantir direitos humanos, atender necessidades de consumo e gerar bem-estar social. O desenvolvimento econômico imposto como ideal e modo de vida, além de ser para poucos, é feito contra o bem comum de todos, contra a integridade da natureza com a qual todos precisamos para viver. Pior, os Estados e o sistema multilateral de governança estão ao serviço disto. Ou seja, mudar, transformar, ir na direção de alternativas ao desenvolvimento econômico-financeiro e ao poder global que nos domina é um imperativo ético e humano, independentemente de ideologias.
O que afirmo é, sem dúvida, radical e soa utópico. Mas sem sonho perdemos o sentido coletivo de viver. Temos uma direção emergente: os Direitos Humanos como embrião de uma nova constituição planetária, para a humanidade inteira, sem deixar povos e diferentes grupos humanos, que são nossa riqueza maior, de fora. Claro, precisamos radicalizá-la, pois hoje Direitos Humanos ainda são contaminados por uma visão eurocêntrica e nortatlântica, onde parecem privilégios e não as regras coletivas de direitos e responsabilidades compartidas pela humanidade inteira.
Como fazer que o capital financeiro, 10 vezes maior do que o PIB mundial, seja regulado por uma prioridade de não violar direitos humanos pelo mundo? Nem falo em promover, pois os investidores deste “cassino global” vão afirmar que isto não é sua tarefa, mas dos Estados e do sistema multilateral. Mas como fazer estes serem responsáveis se estão profundamente comprometidos com a própria globalização? Lembro aqui que, ainda no final dos anos 90, sob Kofi Anan do esperançoso ciclo de Conferências Mundiais, a ONU se rendeu e propôs o Global Compact, exatamente com as empresas globais mais criminosas em seus negócios? Os débeis Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, adotados em 2000 – um mínimo denominador comum, com metas que nada mais foram do que a projeção do que vinha como tendência no mundo. Na minha visão, não foram compromissos por um mundo melhor, mas um consenso legitimador da globalização destrutiva e excludente. Pior, transformaram grandes empresas em algo socialmente responsável, coisa que nunca foram e nunca o serão.
Os exemplos da falta total de compromisso com os Direitos Humanos se multiplicam. Destaco aqui alguns emblemáticos. A questão dos migrantes na Europa e nos EUA. Mercadoria pode circular mais livremente pelo mundo do que gente detentora de Direitos Humanos como os migrantes, os verdadeiros párias do planeta que estamos construindo. Mas o que dizer da tal “Troika” – governo da Alemanha, Banco Central Europeu e FMI – com o que ela impôs para a Grécia? Em nome de interesses financeiros de bancos e investidores estrangeiros, a “Troika” impôs um plano de ajuste estrutural para o governo grego que violam direitos humanos de forma sistemática nos dias de hoje. Ainda nos iludimos a respeito! Os exemplos são muitos.
Lembro em particular aqui o direito comercial em torno à propriedade intelectual: uma violação a Direitos Humanos econômicos, sociais e culturais sem igual. E isto, como regime legal, está acima de todos os outros regimes, como o dos Direitos Humanos. Em nome da propriedade intelectual, transformada em mercadoria, se sacrifica tudo, em qualquer parte do mundo. Mas se sacrificam, em especial, a cultura e o conhecimento, bens comuns que se fazem e crescem pelo compartilhamento, por serem gestados de forma comum. Um crime de lesa humanidade, de toda humanidade, até dos tais donos de patentes de propriedade intelectual. Matam a possibilidade de continuarmos criando cultura em nossa diversidade, matam a possibilidade de geração de conhecimentos úteis que a vida exige e matam a própria ciência. Existe atentado maior?
Creio que atentados globais, dada a imposição globalizante dos negócios, sem fronteiras, existem aos montes. Gostaria, porém, de lembrar um que está na agenda, mas nem todo mundo o vê como um atentado dos Direitos Humanos. Falo da atmosfera poluída e da mudança climática. Afinal, não existe vida possível sem o ar que respiramos, a água que bebemos, o clima que nos permite plantar, colher e gozar a vida. Pois bem, a atmosfera foi colonizada. Isto mesmo, colonizada! A colonização se deu no contexto da emergência e desenvolvimento da civilização industrial capitalista, capitaneada por detentores de capital e dos Estados nacionais a seu serviço. As emissões gestadas pelo uso de combustíveis fósseis romperam os limites de resiliência da própria natureza, ao mesmo tempo em que gestou um mundo humano muito mais desigual socialmente, intra e interpovos. Hoje vivemos a ameaça da mudança climática, ela mesma uma violação de direitos iguais entre nós mesmos e uma violação de Direitos Humanos de gerações futuras a receberem o mesmo planeta Terra que nós recebemos como dádiva. Por que governos e grandes corporações dominantes evitam assumir tal violação e agir no sentido responsável? Na minha visão, “donde menos se espera é daí que nada vem”, como se diz no Brasil. O que fazer, então?
Penso que os problemas e os desafios poderão ser enfrentados se nós mesmos, emergente cidadania planetária, reconhecermos o potencial instituinte e constituinte que emana de nós, não das economias, não dos Estados. As grandes mudanças no mundo, ao longo da história, sempre dependeram do engajamento de povos. Estados Nacionais são uma velha construção multilateral, velha de uns cinco séculos, feitos sob medida das emergentes burguesias comerciais e capitalistas da Europa, competindo pelo controle de mercados exclusivos a seu benefício. Não preciso entrar em detalhes, pois esta história dominante nos é imposta nas escolas em qualquer lugar do mundo. Aliás, a emergência dos Estados Nacionais foi uma condição das conquistas coloniais, da escravidão moderna e do tráfico negreiro. Trata-se de uma construção política totalmente inadequada para dar conta da diversidade de povos do planeta e do seu direito de existir como tal. Hoje, com mais de 200 Estados Nacionais pelo mundo, temos uma realidade geopolítica imperial que exatamente explora e utiliza tal realidade ao serviço da globalização capitalista, sob o comando das grandes corporações.
A ONU, construída sob o impacto da II Guerra Mundial, vem perdendo legitimidade e capacidade de regulação do mundo. Trata-se de uma organização de governos nacionais unidos, muito deficitária em termos democráticos e de cidadania para conseguir impor padrões de convivência planetária com paz e sem guerras, com justiça e dignidade para todos os seres humanos, sem discriminações, com respeito à integridade da Terra, nossa casa comum. O FMI, o BM e a OMC são organizações impositivas das leis do capital, sem respeito algum às convenções de Direitos Humanos da ONU. G-7, G-20, UE e Brics não surgem para fazer um mundo melhor, mas sim para entrar em disputas geopolíticas de poder.
Assim, precisamos olhar para nós mesmos e ousar. Precisamos que o impossível se torne possível, como nos ensinou o grande Mandela. Precisamos fazer emergir de nós mesmos, nascente cidadania planetária, os movimentos sociais e as estratégias de mudança. Trata-se de valorizar e potencializar a nossa igualdade humana na diversidade de povos, culturas, cores, opções e sonhos. Só nós mesmos poderemos mudar. Ao menos, é de nós, do interior das sociedades, que podem surgir movimentos cidadãos de dimensões planetárias que resistem e, mais, que se põem a construir, juntos, alternativas para outro mundo.
Tarefa difícil, de muitas gerações, mas que precisamos começar agora. Os Direitos Humanos não são uma realidade, são sobretudo uma direção para não nos perdermos no caminho. Temos o rumo, criemos a vontade de mudar!
*Cândido Grzybowski é Sociólogo, diretor do Ibase.
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Imagem rperoduzida do site da KNH Brasil SECO .