por Mamadou Ba – Buala
As políticas de imigração estão, não só longe de corresponder ao quadro idílico com que se pinta a realidade, como constituem objetivamente instrumentos de exclusão política das e dos cidadãos imigrantes no exercício da cidadania. O sistema político não quer admitir que a categoria política imigrante – resultante da herança pós-colonial e das dinâmicas da globalização, com todas as suas implicações na gestão da participação política das comunidades imigrantes – veio abanar estruturalmente a conceção do Estado-Nação, como a conhecemos até agora.
Veio ainda desafiar para uma rutura teórica e política sobre a praxis política e os ajustes imperativos a operar que garantam as possibilidades democráticas da afirmação cidadã dos e das migrantes no jogo democrático. O Estado-Nação, espaço onde tradicionalmente se arreiga e se conforta a ideia de pertença (espécie de bitola identitária homogénea e onde a categoria política “cidadão nacional” é essencial na legitimação da exclusão do “outro”), ainda aparece como horizonte quase intemporal e a-histórico, como se de uma emanação natural se tratasse e não fruto de uma construção social e histórica, para assim justificar a exclusão dos “outros” (neste caso, @s imigrantes) do tal universo “nacional”.
O regime político vigente, assente no Estado-Nação, teima em transportar inabaláveis perceções racistas que consolidam as narrativas coletivas sobre “nós” e os “outros”, confortando as discriminações institucionais e afastando @s cidadãos imigrantes da participação política. E de facto, na Europa em geral e em Portugal em particular, a porosidade política entre racismo, colonialismo, imigração e pós-colonialismo está na base da negação @os imigrantes da condição de sujeito político. Claro está que, no contexto atual, com milhares de cidadãos imigrantes a viver no país, a naturalização obsessiva da instância política “Estado-Nação”, que privilegia a nacionalidade em detrimento da cidadania, constitui uma potencial forma de legitimar a exclusão d@s imigrantes da vida política.
No concreto, esta narrativa política e culturalmente construída e socialmente legitimada afasta @s imigrantes do espaço público, do debate político e da disputa pelo poder e pela construção democrática de uma sociedade onde a diversidade está objetivamente refletida e representada. A nacionalidade e a cidadania são duas dimensões políticas distintas que constituem instrumentos soco-políticos diferentes consoante as circunstâncias, desempenhando obviamente funções políticas também diversas.
A nacionalidade é um espaço jurídico e institucional, com pouca presença na nossa vida quotidiana, enquanto a cidadania é um instrumento político e uma ferramenta social que nos liga, através de múltiplos laços, com concidadãos do mesmo espaço geográfico e político – seja este espaço a região, o concelho ou o país. A cidadania está presente em cada um dos nossos atos e dos atos da sociedade para connosco, sejam eles administrativo, político, económico, cultural e social, pelo que deve consequentemente incluir todos os habitantes, quer sejam nacionais ou não. O princípio básico de uma democracia é o direito de cada cidadão participar nas decisões que lhe dizem respeito.
Ora, é sem dúvida evidente que todas as decisões políticas influem na vida d@s imigrantes em todos os aspetos, pelo que, logicamente, têm que ter uma palavra a dizer sobre as mesmas. E aqui ter a palavra quer simplesmente dizer poder votar e ser eleito, para poder fazer as escolhas políticas que bem entender em igualdade de circunstâncias com os demais cidadãos. Infelizmente, a prática e o discurso político tem procurado limitar ou quase restringir o espaço de inclusão e de participação ao campo social, como se todas as decisões que dizem respeito à vida, ao presente e ao futuro de cada um(a) e de tod@s nós, não fossem políticas.
Por um lado, sabemos que para outorgar o direito de voto @os imigrantes é preciso uma revisão constitucional que, por sua vez, depende para além da capacidade de iniciativa legislativa, de uma vontade política de mudança. Também sabemos que as leis não são emanações divinas nem entidades imutáveis. São obras das sociedades cuja alteração depende da vontade política e das relações de forças que nelas se confrontam. E para tal mudança é preciso convocar e haver a vontade ou não de o fazer.
Por outro lado, a evolução das conquistas civilizacionais mostra que as mudanças estruturais fizeram-se em rutura e, na maior parte das vezes, no confronto e na difícil superação das contradições entre a resistência à mudança e a sua necessidade, entre o apego ao status quo e a vontade de progresso. Portanto, os argumentos de oportunidade política e social muitas vezes aduzidos para não permitir o direito de voto d@s imigrantes não colhem. Porque na verdade, sem vontade política não há espaço para oportunidade nem social, nem política, de mudança. E em boa verdade, para além do óbvio bom senso que advém dos argumentos de princípio, ou seja, do princípio de não discriminação e de igualdade, temos ainda o argumento de imputabilidade.
@s imigrantes estão sujeitos aos mesmíssimos códigos sociais, à igual ordem jurídico-constitucional, são tão imputáveis perante o Estado e a sociedade como qualquer cidadão nacional, pagam impostos e respondem às mesmas instituições jurídicas e administrativas do país que os nacionais. Para além do mais, estes homens e mulheres são objetivamente de cá, porque, de todos os pontos de vista, pertencem ao espaço político e económico do Estado Português, porque a sua residência habitual é neste território, porque são cidadãos que, na sua maioria, mantêm relações efetivas e afetivas mais intensas com o seu país de residência do que com o país de origem.
É certo que o direito de voto não resolverá todos os problemas das comunidades imigrantes. Mas contra a «democracia de baixa intensidade», que serve os interesses de um certo poder hegemónico, de um certa forma racista de pensar a cidadania, é preciso inventar uma «democracia de alta intensidade», que possibilite naturalmente abrir a cidadania à diferença, não apenas por uma mera lógica instrumental de participação política, mas sim por uma questão de sanidade democrática.
A democracia só é efetiva e completa quando for capaz de incorporar a expressão da sua diversidade e permitir que nela exista a real possibilidade de coabitação e de confronto democrático da e na diferença. Uma coisa é certa: teimar em alimentar um fictício conflito entre nacionalidade e cidadania para exercício de direitos políticos, só agrava a enorme crise não apenas de representatividade, mas sobretudo, de legitimidade democrática do regime e das suas instituições.
Os imigrantes vivem e convivem connosco, construíram e ainda constroem todos os dias este país connosco, os seus filhos como os nossos são o presente e futuro deste país, eles partilham todas as obrigações e responsabilidades sociais e económicas deste país connosco. Não há motivo nenhum para continuarem excluídos da cidadania que conta em democracia: a cidadania política. Se queremos construir uma sociedade verdadeiramente democrática que represente uma ruptura real com o actual estado das coisas, teremos de aprender a viver e decidir juntos! Isto é uma absoluta exigência democrática a qual não nos podemos furtar para responder aos desafios que a cidadania impõe a uma sociedade cosmopolita.
Portanto, aqui vivem os imigrantes, aqui devem votar!
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Foto: Mural Relvas nas Amoreiras, Lisboa, by Nomen; fotografia de Nuno Pinto.