A atual movimentação política da sociedade brasileira traz de volta a necessidade de se discutir o papel do Estado
Por João Paulo, no Brasil de Fato
Há algumas décadas, todos admiravam o estágio de civilização de alguns países da Europa, que garantiam a seus cidadãos uma condição de vida digna, traduzida em políticas públicas de qualidade, sobretudo de saúde e educação. Além disso, eram democracias sólidas, com ampla participação popular, vida sindical madura e aparato eficiente de proteção do trabalho e da seguridade social.
O nome que se dava a esse sistema, Estado de bem-estar social, tinha por trás uma concepção de Estado (comunitário), um valor humano (o bem-estar) e uma destinação ética da riqueza produzida socialmente (a solidariedade). Com a emergência do neoliberalismo, tudo se desmantelou: o Estado se submeteu ao mercado, o bem-estar foi trocado pela insegurança, e a solidariedade social deu lugar à competição individualista.
A atual movimentação política da sociedade brasileira traz de volta a necessidade de se discutir o papel do Estado. Já não se fala mais em “bem-estar”, como se a expressão estivesse manchada pelo excesso de protecionismo e distribuição de renda – o que se tornou quase um erro moral para o capitalismo –, mas tão simplesmente em Estado social. Mesmo aí, o jogo tem sido duro. Não vai demorar muito e, além de perder o bem-estar, que já faz parte do passado, o Estado vai jogar no lixo até mesmo sua marca social.
A tentativa de colar ao Estado e às suas políticas todos os equívocos do país não é apenas um erro de diagnóstico. Na verdade é um projeto bem pensado por intelectuais orgânicos e executado com a colaboração sempre solerte da mídia empresarial. O que está por trás da desvalorização da ação pública é uma tentativa ordenada de desfazer os laços sociais em nome dos interesses individuais. Talvez por isso a recente ida às ruas – que precisa ser valorizada por seu potencial de mobilização social – tenha sido assumida por muitos como um ato pessoal, quase um desabafo pré-político, uma manifestação histérica, no sentido freudiano. Uma atuação.
Trata-se de uma estratégia que teve muito efeito plástico e, aparentemente, pouca efetividade no nível da consciência dos seus atores. É muito mais difícil discordar com argumentos racionais do que odiar com sentimentos. A política exige o duro trabalho do confronto diário e construtivo de ideias e projetos, não apenas um evento com palavras de ordem que promovem a anulação do outro: fora, basta, morra! Nada poderia ser melhor para o país que a politização da elite. Mesmo que o embate se tornasse mais difícil, pelo menos se daria no plano da razão.
A questão é mais que pertinente. Sob a capa da aparente efervescência política de certos setores conservadores da sociedade, começa a se desenhar pelo avesso mais uma tentativa de desmonte do Estado. Ao transformar a indignação pessoal em motor da história, o que se estabelece é um discurso de descarte do interesse público e das soluções democráticas e cidadãs. Sai o coletivo e entra em cena o salve-se quem puder das demandas pessoais, anticomunais e que buscam traduzir tudo que é coletivo em ato de consumo individual.
Assim, a noção de “público” deixa de ter a significação que se consagrou historicamente em expressões como saúde pública, educação pública e segurança pública, por exemplo. Em vez de propor soluções universais para os problemas socialmente produzidos, estimulam-se atos de compra de produtos, oferecidos como distintos e mais eficazes.
Há pelo menos três grandes prejuízos sociais envolvidos nesse caminho. O primeiro é a perda do vínculo social, com sua consequência para a vida política do país. A democracia, ao elevar o indivíduo à categoria de cidadão, transforma o que é carência em direito. E é na qualidade de detentor de direitos que o cidadão se apresenta no mercado político. Por isso, numa democracia digna do nome, os direitos coletivos são os mais importantes. Uma democracia de consumidores é, por natureza, menos democrática que uma democracia de cidadãos.
O segundo aspecto se relaciona com as políticas públicas propriamente ditas. Basta examinar como a desvalorização do Estado social implica no desprestígio das ações voltadas para todos os cidadãos. A educação é vista cada vez mais como uma conquista pessoal e é recorrente o ataque à escola pública, a desvalorização da carreira do professor e a competição alucinada entre as escolas particulares, que se digladiam na busca de ocupar posições em um ranking questionável sob o aspecto pedagógico. Tudo em busca de alunos/clientes e com o aplauso dos pais, que se engajam nessa equivocada disputa pelo pódio. Tudo para se sentir recompensado por seu “investimento”.
A área da segurança privatiza recursos de todos os cidadãos para garantir o patrimônio e a “paz” social das áreas habitadas pela camada mais rica da população. Além de criar uma territorialização fascista, reserva para a periferia a estratégia da violência para combater a violência, alimenta a exclusão na defesa contumaz da criminalização da pobreza e na busca de antecipação da maioridade penal.
A bola da vez é o Sistema Único de Saúde, o SUS, que vem sendo atacado em todas as frentes, inclusive com questionamentos legais de seus princípios fundamentais, como a universalidade, a integralidade e a equidade. E dá-lhe planos de saúde (que financiam políticos de vários partidos, uma verdadeira “bancada da carteirinha”) e abertura ao capital estrangeiro, com o falso argumento de modernização e competitividade. Nada dá mais audiência que apresentar os problemas do sistema público de saúde. Não existe propaganda melhor para as seguradoras e empresas de administração de planos que uma reportagem no Fantástico.
Por fim, no nível mais humano, a destruição do Estado social tem trazido para o coração dos homens e mulheres um perigoso sentimento de medo. Sem a sensação de pertencer a um projeto coletivo, uma espécie de seguro público que proteja contra algumas consequências sociais da desigualdade, as pessoas passam a viver um sentimento de incerteza, exclusão e risco de se tornarem descartáveis. O outro passa a ser visto como inimigo.
E, o que é mais grave, na ausência de um Estado social o medo se torna um mercado e tanto. Amparados pela lógica cínica dos meios de comunicação, os temores vão se espalhando pelos quatro cantos da vida social: os pais não confiam na escola pública e não se mobilizam em sua defesa; os trabalhadores passam a reivindicar planos de saúde em detrimento do fortalecimento do sistema público de atenção; a classe média se entrega na mão da indústria da segurança privada, quando não tenta se preservar por trás dos muros dos condomínios.
Ao abdicar do Estado e apostar no consumo, além de mais isoladas – mesmo se apresentando em bandos para bater panelas e pedir a volta da ditadura –, as pessoas se tornam menos propensas à solidariedade, à busca da igualdade e ao que um dia foi chamado de fraternidade. O Estado de mal-estar social, nessa hora, vence a batalha.