Pedro Leal David, Informe ENSP
Do lado de fora, já era possível ouvir o burburinho. Era dia de casa cheia. Na quarta-feira, 18/03, estudantes, pesquisadores e funcionários da Fiocruz lotaram o auditório do Museu da Vida para assistir à aula inaugural do ano letivo da Escola Nacional de Saúde Pública. O motivo de tanta mobilização tinha um nome: Marilena Chauí. A professora de filosofia da Universidade de São Paulo foi recebida com entusiasmo pelo público, que, meia hora antes de sua palestra, já ocupava as cadeiras do salão e passou a se espalhar pelas laterais, em pé, ou sentado no chão. Todos queriam ouvir essa senhora que, aos 73 anos, não foge ao combate ao qual se dispôs a lutar durante sua vida com sua arma mais afiada: o pensamento. Assista ao final da matéria a íntegra da palestra.
O diretor da ENSP, Hermano Castro, lembrou que, há mais de vinte anos, Marilena Chauí não vinha à Fiocruz. Ao aceitar o convite, intermediado pelo pesquisador Paulo Amarante, também da ENSP, Marilena demonstrou que vive a prática cotidiana daquilo que acredita ser o principal papel dos intelectuais: ocupar os espaços de fala. De saída, a professora contou que esteve recentemente acamada, algo muito raro em sua vida. Segundo seu amigo Marco Aurélio Garcia, atual assessor especial da Presidência da República, ela estaria somatizando o que está acontecendo no Brasil. Com um leve sorriso de ironia, mas que em nada discordava da hipótese levantada por Marco Aurélio, Marilena desculpou-se pela voz baixa e um possível mau desempenho em sua fala, começando aula.
O moinho de vento da vez foi a chamada universidade operacional. É esse o termo que Marilena usa para (des)classificar a universidade surgida das mudanças ocorridas no ensino superior, no mundo inteiro, que transformaram os centros de ensino em meros reprodutores de mão de obra e pesquisas para o mercado.
– Nos últimos quinze anos, eu tenho discutido de formas variadas essa questão tentando entender o que se passou na mutação do ensino superior e quais lutas estão postas para nós em função dessa mudança. Ela não pode ser desvinculada de uma mudança maior em escala planetária da forma assumida pelo capitalismo, isto é, a forma neoliberal. A nossa falta de poder sobre as circunstâncias que modelaram a universidade na qual nós nos encontramos não significa, entrentanto, que devamos nos curvar a isso. É por esse motivo que, onde me é permitido falar, tenho ido de lança em punho. Sem o Sancho Pança no momento, mas na luta. Porque eu disse aos meus netos que tinha esperança de não precisar mais dizer a frase que me acompanhou desde os meus 12 anos: “A luta continua.” Mas eu vou para o caixão segurando um ramo de flores e, provavelmente, estará escrito, saindo da minha boca: A luta continua.
Instituição Social x Organização Social
Para explicar a universidade operacional, contra a qual aponta sua lança, Marilena iniciou sua aula lembrando que, historicamente, desde que surgiu, no século XIII, na Europa, a universidade foi uma instituição social fundada em dois princípios: o reconhecimento público de sua legitimidade e atribuições; e o princípio de diferenciação, que lhe dá autonomia frente a outras instituições.
– A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idia de autonomia do saber em face da religião e do Estado. A partir de seu surgimento, a universidade tornou-se inseparável das ideias de formação, reflexão, criação e crítica.
Em determinado momento, porém, segundo Marilena, a instituição social transformou-se em organização social, pensada com base na ideia e na prática da administração. Citando a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a professora lembrou que essa ideia é inseparável do modo de produção capitalista como produção de equivalentes para o mercado.
– Não há diferença entre administrar uma montadora de veículos, um shopping center ou uma universidade.
Saem, portanto, formação, reflexão, criação e crítica e entram eficácia, planejamento, gestão, controle e êxito. À diferença da instituição social, a organização social não discute sua própria existência e função, seu lugar no interior da luta de classes.
– A instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos.
Marilena Chauí identifica três momentos que levaram a essa transformação, culminando na universidade operacional, no Brasil. O primeiro deles, nos anos 1970, deu-se quando, a partir de mudanças curriculares, surge a chamada universidade funcional, voltada para a formação rápida de mão de obra qualificada para o mercado. Nos anos 1980, tem-se a universidade de resultados, pouco interessada em docência e voltada para pesquisas, adotando o modelo do mercado afim de determinar sua qualidade e quantidade. Em meados dos anos 1990, é quando surge, finalmente, a universidade operacional, voltada para si mesma como estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.
– Definida e estruturada por nomes e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, a universidade está pulverizada em microorganizações, que, noite e dia, ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho do conhecimento.
Na prática, isso significa aumento de horas-aula, diminuição do tempo para mestrados e doutorados, avaliação por quantidade de publicação e a multiplicação de comissões e relatórios.
– Virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde esse se encontra, a universidade operacional opera e por essa razão não age. Não surpreende, então, que esse operar co-opere com sua contínua desmoralização pública e degradação.
Nesse processo, Marilena identifica a desvalorização da docência, com contratos de trabalho precários e recrutamentos que não consideram se os professores dominam ou não sua área de conhecimento.
– A docência é pensada como habilitação rápida para graduados que precisam entrar com urgência num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação. O que significa exatamente formação? Antes de mais nada, como a própria palavra indica, uma relação com o tempo. É introduzir alguém ao passado de sua cultura, entendida como ordem simbólica ou de relação com o ausente. É despertar em alguém as questões que esse passado engendra para o presente. É estimular a passagem do instituído para o instituinte. A obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não poderia ser pensando, nem dito e, sobretudo, quando, por seu próprio excesso, propicia-nos a pensar e dizer, criando em seu próprio interior a posteridade que irá superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava sedimentado na cultura, a obra de pensamento reabre o tempo e forma o futuro.
Se a docência está desvalorizada como formação, não significa haver valorização da pesquisa, que passa a ser vista como um survey de problemas e obstáculos para a realização de objetivos. Exemplificando, Marilena Chauí citou o caso de uma professora de Ciências Sociais chamada a uma banca na Escola Politécnica da USP. Tratava-se de uma tese de doutorado em que a aluna procurava demonstrar as rotas mais racionais para os caminhões da Coca-Cola. Sem esconder o estarrecimento, Marilena comentou o fato.
– Quando me foi dito que isso era pesquisa, eu disse, bem, há três possibilidades: eu estou dormindo e tendo um pesadelo; segunda possibilidade: a pessoa que está me contando não entendeu e me disse uma coisa que não é verdade; a terceira possibilidade é: vamos pegar uma bomba e jogar na escola politécnica e acabar com ela, não tem mais nenhuma outra possibilidade, porque, se eu posso considerar um doutorado investigar quais são as rotas mais racionais, mais eficazes, mais econômicas para os caminhões da Coca-Cola, estamos perdidos, podemos fechar tudo, porque já dançou tudo. Embora esse caso seja extremo, com gradações, você vai do caminhão da Coca-Cola a algo parecido com o caminhão da Coca-Cola em pesquisas consideradas mais sérias. É isso que uma organização entende por pesquisa.
Marilena Chauí também voltou seu arsenal contra os meios de mensurar a produtividade acadêmica, que prezam pela quantidade. A professora citou um estudo que contabilizou todos os artigos escritos nos últimos vinte anos. A conclusão a que se chegou foi que, de 250 milhões de publicações, apenas 5 milhões apresentaram, sob determinados critérios, o que é considerado autoria. Desses 5 milhões, apenas 50 disseram algo realmente novo.
– Com tanta produção, a gente se pergunta quem é o Galileu do pedaço, quem é o Einstein do pedaço. Não tem. É um horror.
As agências de financiamento também receberam seu quinhão de críticas. Uma delas foi a exigência do Inglês como língua obrigatória para a redação de resumo de artigos e teses e, em última instância, seu status de língua universal.
– Quando Roma o impôs ao mundo, o Latim era a única língua que possuía gramática, dicionário, retórica e o ensino oral e escrito. As outras línguas, com exceção evidentemente do Chinês e do Persa, eram pura oralidade. O domínio que Roma teve da língua como uma potência escrita e gramaticalmente controlável fez com que ela pudesse ser imposta ao império inteiro. Só o Inglês dos EUA tem gramática, sintaxe, retórica, dicionário? “Nós não tem nada?” “Nós é uma língua oral, perdida numa nuvem por aí?” De onde vem que o Inglês dos Estados Unidos é a língua da cultura, a língua do saber, a língua da ciência? Não tem nenhuma justificativa a não ser o poderio geopolítico dos Estados Unidos. Que os Estados Unidos queiram impor, tudo bem, serviço deles, numa boa. Vamos lá, Obama! Mas que nós, cretinos, idiotas, aceitemos isso, interiorizemos isso?!
A essa altura, quem escutava Marilena falar nem mais lembrava da previsão de “fraco desempenho” que a própria professora fizera ao abrir sua palestra. A voz ficou mais alta, firme. O ataque, mais intenso.
– Vocês acreditam que a Fapesp, em São Paulo, quer que os relatórios de bolsa sanduíche, para a França, para Alemanha, para trabalhar um filosofo francês, um filosofo grego, um filosofo espanhol, sejam feitos em Inglês? Mas isso não quer dizer coisa nenhuma. Isso é estúpido. Isso é estúpido! Você vai e estuda trinta anos de grego para poder ler direitinho o Aristóteles. Aí vai escrever a partir do que ele diz na biologia e na psicologia, como pensa a relação entre a alma e o corpo, a questão do sonho, da loucura etc. Coisas maravilhosas que Aristóteles foi capaz de pensar. Você escreve, faz um lindíssimo trabalho e aí vem um coió de coisa nenhuma na Fapesp e diz pra por em Inglês? Mas você trabalhou em grego, companheiro. Você conseguiu produzir algo que cria uma língua filosófica e culta portuguesa. Graças ao trabalho feito com toda essa filosofia grega, que te permitiu criar um vocabulário, um pensamento em português filosófico a gente inventou a filosofia falada em Português, e vem uma besta quadrada e diz para pôr em Inglês. Quando também não sabe o Inglês, porque é o inglês do Open English.
Contra a classe média
Ao fim de sua aula, Marilena Chauí trouxe para o campo de batalha aquela que tem sido sua adversária mais constante nos últimos tempos: a classe média. Aulas suas filmadas e postadas na internet vêm gerando discussões nas redes sociais e reações de colunistas da grande imprensa. Muitos desses vídeos nos quais fala com todas as letras que odeia a classe média encontram-se dispersos e editados na rede. Eles têm sido usados por adversários políticos do atual governo, uma vez que Marilena é uma das fundadoras do PT, partido ao qual é ligada até hoje. No fluxo de sua aula, entretanto, é possível entender melhor o que ela compreende por classe média e os motivos pelos quais ela teceu suas críticas severas. Para Marilena, é da classe média que emana o reforço ideológico que mantém as desigualdades sociais no Brasil, sendo o responsável pelo fenômeno da universidade operacional.
– A classe média vê na universidade simplesmente o diploma para ascensão social individual. Por não ocupar um lugar definido na divisão social das classes determinada pelo capitalismo, a classe média se vê excluída do poder político (ela não tem o poder de Estado) e social (ela não tem a força dos movimentos sociais dos trabalhadores organizados). Procura compensar essa falta de lugar exercendo um poder muito preciso: o poder ideológico. Como sabemos, a classe média tem um sonho e um medo: sonha em se tornar burguesia e tem medo, pânico de se proletarizar. Por isso, atualmente, ela se torna o suporte social e político da ideologia neoliberal, individualista e competitiva, que produz o estreitamento do espaço público e o alargamento do espaço privado. A adoção e defesa dessa ideologia leva a classe média a afirmar a incompatibilidade entre as duas dimensões da universidade [dimensão política e acadêmica] e a propor que se deixe por conta do mercado a definição das prioridades de formação acadêmica e pesquisa. Essa posição anti-democrática significa a defesa da universidade operacional e da privatização do saber, que entra em choque com uma política de abertura e expansão da universidade como um espaço social de criação e afirmação de direitos e de inclusão.
Ao fim da aula, abrindo a palestra a perguntas da plateia, Marilena foi questionada sobre as possibilidades de se superar esse modelo em que a classe média atua na sustentação da universidade operacional e das desigualdades sociais. Uma das interlocutoras lembrou das dificuldades de se mudar essa dinâmica tendo em vista que a grande maioria dos professores e alunos pertence, justamente, à classe média. Marilena respondeu com uma tirada que em tudo lembrou a famosa frase de Jean Paul Sartre, que dizia: na vida não importa o que os outros fizeram com você, mas o que você faz com o que fizeram de você.
– Eu sei, nós somos de classe média, mas o importante é o que fazemos com isso, disse Marilena.
Aplaudida de pé, Marilena Chauí ainda tirou algumas fotos, autografou livros seus, que alguns pesquisadores e alunos revelaram ter trazido diretamente de suas cabeceiras, mas desculpou-se pela pressa e logo embarcou num táxi a caminho do aeroporto. Minutos depois de sua saída, ainda se sentia no público o encantamento produzido por sua força intelectual. Debilitada pela crise que convulsiona o país, mesmo já tendo escrito seu nome entre os pensadores mais prolíficos do Brasil, a certeza que ficou no ar, no auditório do Museu da Vida, é que a lança de Marilena estará, por muito tempo, em riste, na vanguarda dos que lutam por um mundo diferente deste que está aí.
Foto: ENSP.