Nota: publicamos este artigo não só pela sua inegável qualidade, mas também para chamar a atenção para a DR, revista online da qual Oiara Bonilla é uma das editoras e na qual ele inaugura a temática indígena. (TP).
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Por Oiara Bonilla e Artionka Capiberibe, na Revista DR
“Dilma pensa que, para ficarmos bem, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria. Nossa lógica e nosso modo de vida são outros: qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.” – Sonia Bone Guajajara.
Marinalva Manoel, índia kaiowa de 28 anos de idade, foi encontrada no dia 1 de novembro de 2014, morta a facadas na beira da BR 163, no município de Dourados, Mato Grosso do Sul. Ela acabava de voltar de uma viagem à Brasília, com outras lideranças guarani e kaiowá, para denunciar a situação dos índios e de suas terras naquele estado, e exigir a retomada, pelo (novo) governo, dos processos de reconhecimento e demarcação de Terras Indígenas no país. Como em outros casos de morte de lideranças indígenas, este assassinato não foi bem esclarecido. Divulgado somente nos sites de notícias dos aliados da luta indígena, logo caiu em esquecimento. A morte de Marinalva veio se somar às mortes indígenas que crescem a cada dia e que, no entanto, não parecem sensibilizar a opinião pública. O que se vê é uma crescente banalização dessa realidade, assim como acontece em relação as inúmeras mortes violentas que ocorrem nas periferias e comunidades pobres do país.
Assiste-se impassivelmente a uma explosão de violência que atinge de forma cada vez mais direta e menos disfarçada os povos indígenas (é importante apontar que quilombolas, ribeirinhos e seringueiros, assim como pequenos agricultores que vivem nas fronteiras agrícolas do país tampouco são poupados), nos quatro cantos do país acumulam-se ataques como aqueles perpetrados contra a população Tenharim no Amazonas, quando os habitantes da cidade de Humaitá depredaram prédios públicos de serviços aos índios e ameaçaram invadir uma de suas aldeias; como os ataques e ameaças aos Tupinambá no sul da Bahia; como a desocupação pelas forças policiais do canteiro de Belo Monte no Pará ou da aldeia Maracanã no Rio de Janeiro e as desinstrusões truculentas operadas pela Polícia Federal e Força Nacional em terras retomadas por índios no Mato Grosso do Sul; como as invasões de terras por garimpeiros e madeireiros nas terras Yanomami no Amazonas e Roraima, Munduruku no Pará e Kaapor no Maranhão; como a criminalização em série de lideranças indígenas (Tenharim, Tupinambá, e mais recentemente Suruí do Pará) etc. Sem falar das violações de direitos e ameaças das quais também são alvo os aliados dos índios, aqueles que lhes dão visibilidade (ONGs, jornalistas, pesquisadores, agentes da FUNAI e do MPF).
Apesar de sua gravidade, acontecimentos deste gênero não costumam ser divulgados pelos grandes veículos de comunicação, ficando restritos a especialistas, apoiadores e simpatizantes da luta indígena. O desinteresse manifesto da grande mídia, sobretudo das redes de televisão, pelas questões de terra e populações tradicionais remete a disputas econômicas. O índio que aparece, muito esporadicamente, é o índio “isolado” (aquele que recusa o contato com a sociedade nacional) ou de “recente contato”, que não tem chances de perturbar a ordem política e econômica do país e que atrai audiência pelo seu exotismo e pela imagem construída de espelho da nação, como se fossem os “verdadeiros” brasileiros, os únicos a quem se deve “preservar”.
O aumento da violência direta e indireta contra os índios vem sendo denunciada sistematicamente pelas lideranças indígenas e por seus aliados. Não há como deixar de notar que esta violência tem como causa e consequência a invisibilidade, o isolamento e o silenciamento histórico impostos às populações indígenas. Isso é diretamente apontado pela socióloga e militante aymara Silvia Rivera Cusicanqui: “as formas mais brutais de racismo quase sempre são guardadas, há formas sutis que se podem detectar na linguagem, no gesto, nas coisas relacionadas com a invisibilidade”.
A ideia de invisibilidade não é nova, traduz a imposição colonial que, ainda hoje, os povos indígenas estão tentando romper. Não é preciso um grande esforço para perceber como ela é alimentada pela mídia e pelo próprio Estado. Através da escola, dos manuais didáticos que expõem aos alunos uma imagem genérica de índio, enquanto suposto “componente” da democracia racial brasileira, a diversidade indígena é apagada, restando em seu lugar uma imagem pálida e própria ao desaparecimento. Além disso, é principalmente nos discursos e através das próprias políticas públicas que são desenhadas em função do mesmo formato genérico e uniformizador de alteridade que essa invisibilidade se acentua. A invisibilização da luta indígena e a violência consequente consolidam um desconhecimento que produz a indiferença generalizada em relação a essas questões. Isso tudo não é novidade, é apenas uma atualização do modo histórico de se tratar a diferença no Brasil.
Os povos indígenas enfrentam, hoje, duas guerras entrelaçadas: a que mata na floresta e a que se trava nos corredores do Planalto. A violência ligada aos conflitos de terra e ao preconceito contra os povos indígenas, cada vez mais descarada, caminha junto com os retrocessos legais promovidos no âmbito do legislativo e do judiciário, isso é atestado pela quantidade crescente de processos, tentativas de projetos de lei e de emendas à Constituição que visam subtrair direitos adquiridos. Esses retrocessos também são conduzidos pelo executivo interessado em viabilizar e agilizar os grandes empreendimentos desenvolvimentistas do PAC, apresentados invariavelmente como incontornáveis e prioritários (usinas hidrelétricas e estradas, exploração de petróleo e gás, mineração, construção de novas usinas nucleares etc). A questão é: por que impactar a todo custo as terras indígenas para viabilizar um projeto nacional quando seria possível evitá-lo ? Essa pergunta vem sendo colocada pelos índios e por pesquisadores de várias áreas desde o caso mais gritante de Belo Monte e voltou a ser posta recentemente pela ex-presidente da FUNAI em relação à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós (que vai alagar a terra indígena Munduruku, PA) ao explicar os motivos que a fizeram pedir exoneração do cargo.
A única resposta possível é a de que, do ponto de vista do Estado-Nação, isso sequer parece ser uma questão, é como se os índios não fossem pessoas, povos, sujeitos com direitos e fundamentalmente com direito à diferença. Silenciados e invisibilizados são dessubjetivados e, assim, acabam sendo objetificados, i.e. passam a ser percebidos como “coisas”, meros “obstáculos” para o desenvolvimento. Com isso, lhes é vedado ocupar a posição de sujeitos e abre-se assim a possibilidade desenfreada das violações, desrespeitos e preconceitos de que são alvo. Há aqui uma afinidade com o movimento produzido na mídia, um processo duplo, de dessubjetivização das minorias, por um lado, e de apagamento de suas diferenças e particularidades, por outro.
Isso não se dá por acaso, uma vez que a opção política dos últimos governos é a de transformar a questão da diferença e do direito à terra e à autodeterminação em um problema de desigualdade social. Neste âmbito, o problema se resolveria com políticas públicas de assistencialismo e combate à pobreza através da inclusão dos índios em programas sociais (Programa Bolsa Família, Auxílio Maternidade, Programa Luz para Todos, Programa Nacional de Habitação Rural) e sua consequente transformação em potenciais consumidores.
Na medida em que a política de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda gestão do governo Lula, sobram aos índios estes programas assistencialistas, com visada universalista, que drenam sua população para as cidades e para a economia de mercado. O resultado disso é um crescimento da dependência socioeconômica dos povos indígenas em relação ao Estado e ao capital e, consequentemente, uma crescente intervenção dos governos nas dinâmicas sociais internas das aldeia. É o caso, por exemplo, das inúmeras questões relativas à infância guarani e kaiowá no Mato Grosso Sul, que hoje acabam sendo tratadas pelos assistentes sociais do governo cujo preparo é nulo para lidar com questões interculturais.
A criminalização de lideranças indígenas que mencionamos acima participa do mesmo processo de neutralização da diferença. Criminalizando a luta dos índios e a ação de suas lideranças, o Estado e a grande mídia anulam sua especificidade e seu teor político. Assim, capturada pela lógica do Estado, a luta indígena é transformada em um movimento “criminoso” qualquer, banalizada, silenciada, dessubjetivizada, podendo ser mais facilmente retirada do cenário para abrir espaço ao desenvolvimentismo.
Nessa longa história de violências, os anos 80 significaram uma vitória sem precedentes para a luta indígena, que se deu principalmente em prol do reconhecimento e da garantia de sua diferença, materializando-se com a inclusão de um capítulo na Constituição Federal que lhes garante direitos fundamentais. A partir desse momento, o Executivo passou a demarcar as terras indígenas, assegurando aos índios uma melhoria na sua qualidade de vida e relativa segurança enquanto povos autodeterminados.
Um dos efeitos da segurança alcançada pela posse da Terra Indígena foi o crescimento da população indígena, fato que, por sua vez, pressionou diretamente interesses econômicos locais ligados à terra e à produção agropecuária, provocando nestes setores uma reação desmedida, que passou a se valer da desigualdade de forças para garantir seus privilégios. São esses interesses contrariados que, a partir dos anos 2000, vão mobilizar sistematicamente a mídia e os poderes do país contra os índios. Um exemplo cabal desse tipo de violência é o leilão, destinado a comprar armamento e contratar seguranças privados, realizado por fazendeiros em Campo Grande (MS), em 2013, contando com o apoio de dezenas de deputados estaduais e federais, do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), atualmente ministra da agricultura do governo Dilma Rousseff.
Para garantir sua sobrevivência enquanto povos, os índios enfrentam hoje uma luta em duas frentes: por um lado, continuam fazendo face ao processo de invisibilização e de silenciamento para poder se afirmar como povos detentores de direitos diferenciados; por outro lado, lutam contra o projeto do Estado que visa transformar a diferença em desigualdade.
Há uma percepção generalizada de que o Brasil está revivendo uma onda bandeirante. Mas, hoje, o bandeirismo tem uma cara nova, continua considerando os índios como um empecilho ao desenvolvimento, mas o lugar que lhes concede dentro dessa ordem social é o de pobres comuns, jamais o de povos singulares e autodeterminados. Até aqui, estamos na mesma lógica que atravessou séculos, aquela que ao empobrecer e espoliar os índios de suas terras destinou-lhes apenas o estatuto de miseráveis. O Estado de hoje apresenta uma nova polarização às já bem conhecidas “cristão vs. pagão” e “civilizado vs. primitivo”, mais “sutil” que as políticas do passado, para ele parece haver duas únicas posições possíveis: o “índio isolado” e o índio do “Cadastro Único” (cadastro do Ministério do Desenvolvimento Social que “identifica e caracteriza as famílias de baixa renda”) . O destino desta posição é o da “inclusão social” cujo efeito inexorável é o do apagamento de suas diferenças e singularidades em benefício de uma nacionalidade-cidadania atrelada a uma condição social pré-definida.
Colocando-se de forma assertiva como sujeitos e posicionando-se frente à indiferença paternalista dos governos e dos brancos, os índios rompem a invisibilidade e o silêncio aos quais estão confinados e exigem que sua posição de sujeito seja claramente enunciada. As retomadas de terras, as ocupações de oficinas em Brasília, de estradas, de canteiros de obras, do próprio Congresso Nacional, são meios para romper essa invisibilidade. Em setembro de 2013, os Guarani-Mbyá de São Paulo bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes que atravessa suas terras, para exigir o reconhecimento legal destas e a suspensão de um projeto de revisão de seus limites. Simultaneamente, divulgaram um vídeo-manifesto no Youtube, realizado por jovens da aldeia onde explicam: “Fizemos isso, para vocês brancos, saberem que nós existimos!”. Em novembro de 2014, os Munduruku, ameaçados pelos projetos hidrelétricos do governo no rio Tapajós (e sistematicamente ignorados ao longo do processo), iniciaram a auto-demarcação de uma de suas terras que aguarda regularização há mais de 13 anos.
Retomando e ocupando espaços, se apropriando de novas tecnologias e recursos midiáticos, adotam uma estratégia de des-invisibilização. A luta é por ter sua dignidade reconhecida, para que se possa enfrentar o inimigo, i.e., todo aquele que propõe e age ativamente para a eliminação dos modos de existência que não se enquadrem na ordem econômica, social, política e ambiental da chamada sociedade ocidental. A luta dos povos indígenas (assim como a das comunidades ditas tradicionais – quilombolas, seringueiros, ribeirinhos etc) é por garantir um espaço aberto à existência de modos diversos de ser e de estar no mundo.
As demandas da luta indígena devem ser ouvidas não somente porque a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) preconiza em seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, mas principalmente porque as populações indígenas estão sendo/ou serão afetadas por um modelo de desenvolvimento com o qual não estão de acordo, um modelo que impõe a predação do meio ambiental e que, com a lógica do consumo econômico nele embutido, leva à degradação do meio social.
Viver, existir, para as populações indígenas é não separar cabalmente a natureza da cultura, é por isso que a terra é um valor tão importante. Essa noção surge nas várias versões daquilo que se chama de “bem viver” ou “viver bem”, um conceito que se apresenta de modo forte entre os povos dos Andes (cujo termo vem do aymara, sumak quamaña, e do quechua, sumak kawsay), mas que é comum a diferentes saberes e tradições indígenas e que, no entanto, carrega uma multiplicidade de sentidos. Se não se pode separar a natureza da cultura, o humano tampouco pode reinar absoluto sobre a natureza.
O “bem viver” é um ataque direto ao antropocentrismo da ontologia ocidental e ele não pode existir sem garantia da terra. A deslegitimização da luta indígena por meio da invisibilização e da criminalização de suas forças políticas não é novidade nem surpresa para ninguém, o que é novo aqui é a ação do Estado que, preocupado em tratar a pobreza como um problema e um conceito universal, termina por neutralizar a diferença e a diversidade, transformando-as em mera desigualdade social. A invisibilização somada à neutralização da diversidade favorece os esforços daqueles setores econômicos para quem a terra é, como diz Davi Kopenawa, “apenas um lugar do qual se arranca riqueza”.
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Fotos: Oiara Bonilla