Uma excelente reportagem sobre os crimes da monocultura do eucalipto: “Falso Verde”

Os textos abaixo foram tirados da reportagem Falso Verde, de Marques Casara (texto) e Tatiana Cardeal (fotos), publicada pela Revista Observatório Social, em dezembro de 2012. Numa incursão de 40 páginas junto a quilombolas, indígenas e agricultores sem-terra do norte do Espírito Santo e sul da Bahia, eles documentaram e fotografaram  os efeitos da monocultura do eucalipto na vida dessas populações. Mas a reportagem não se limita a testemunhos e depoimentos, e na parte final temos também o posicionamento das empresas produtoras – Votorantim, Stora Enzo, Fíbria e Veracel – e do BNDES, seu grande financiador estatal. Os dois anos que se passaram desde a publicação não tornaram a denúncia ultrapassada. Pelo contrário. Aí vão, pois, alguns trechos, como um convite à leitura da reportagem completa.  (Tania Pacheco)

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Antes de morrer, Jerre Adriani Valentim vomitou sangue durante seis noites em uma bacia de plástico, colocada pela mãe ao lado da cama, no quarto de pau a pique onde viviam, em um ajuntamento de casas conhecido como Vila São Jorge, às margens de uma estrada empoeirada no extremo norte do Espírito Santo.

Em meio aos delírios da febre que o acometeu durante uma semana, viu pela janela a correria dos moradores da vila, primeiro por causa de Vanderson, 11 anos de idade, depois por causa do pequeno Vando, de sete anos. Os meninos começaram a adoecer poucos dias antes de sua morte, ocorrida em uma manhã fresca e úmida de 13 de agosto de 1994.

Em seus momentos finais, ardendo em febre, vomitando um sangue espesso e escuro, Jerre Adriani perguntava à mãe por que os correntões ainda trabalhavam nos campos em torno da Vila São Jorge, mesmo depois de todas as árvores terem sido derrubadas.

Naquele momento, no desespero da morte, o que Jerre Adriani pensava ouvir estava além do entendimento da mãe, que atribuía seus desvarios às ebulições do veneno que corria em suas veias.

Do lado de fora, não havia nada além de um silêncio seco e pesado, quebrado às vezes pelo vento, que fazia estremecer as copas mais altas do mar de eucaliptos que agora cercava a Vila São Jorge. Um mar verde, uniforme, sem pássaros, sem animais, sem os tratores que anos atrás colocaram tudo abaixo.

Maria Valentim, mãe de Jerre Adriani, só foi entender os delírios do filho muitos anos depois, quando também doente e queimando de febre, acordou pensando ouvir o mesmo ruído ensurdecedor do correntão arrancando as árvores da Vila São Jorge.

Nesse dia, ao despertar com o corpo lavado de suor, ao abrir a janela e dar-se conta do silêncio que caía sobre a vila, Maria Valentim percebeu que o rapaz ouvira, nos estertores da morte, o antigo rugido que ficara impresso na memória dos moradores do lugar.

Em um espaço de oito horas, o terreno em volta das casas foi inteiramente devastado pelas máquinas, que chegaram sem avisar e colocaram abaixo 150 anos de trabalho duro, iniciado pelo bisavô Valentim, escravo fugido das fazendas que cobriam a região no século 19. (continua na página 35. Acessar aqui)

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antonio carlos - guarani es

Meu nome é Antônio Carvalho, tenho 47 anos e sou índio Guarani, cacique da aldeia Boa Esperança. Eu nasci na viagem em busca da Terra Sem Males, quando meu povo caminhou do Rio Grande do Sul até essas planícies do Espírito Santo, para encontrar as aldeias e parentes que já estavam aqui.

A busca pela Terra Sem Males é o mito mais sagrado do nosso povo. Nós seguimos as leis da natureza, nós sentimos as coisas pelo coração e pela mente.

A empresa de celulose está ferindo os nossos saberes. Para eles, as leis da natureza são invisíveis, eles não sentem a natureza, não sabem como respeitar a fauna e a flora.

Destruir a fauna e a flora não é sábio. A devastação desequilibra a vida, traz doença e morte.

O eucalipto traz tristeza e devastação, seca os rios, polui as nossas plantações.

A empresa diz que vai doar mudas de árvores para recuperar as terras que ela devastou. Nós não queremos consertar o estrago que a empresa fez nesses 30 anos. Nós queremos que a empresa assuma a responsabilidade pela devastação, pela morte dos rios, dos pássaros, pela morte da natureza.

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mulher quilombola casa de rafinha - es

Meu nome é Luciana Batista Vasconcelos, moro na comunidade de Angelim 1 e tenho 58 anos.

Eu trabalho, com minha família, em uma das últimas casas de farinha do Sapê do Norte, como é chamado esse lugar de quilombos, o Sapê do Norte.

A casa de farinha sempre foi o centro da comunidade, lugar de trabalho, de conversa, de alegria e de tristeza. Tudo acontecia aqui, na casa de farinha.

Nossa cultura começou a morrer já tem muito tempo, quando começaram a plantar os eucaliptos. Eram 30 mil famílias de negros no Sapê do Norte, gente de quilombo, gente acostumada a viver da terra. Hoje, tem menos de mil famílias.

A firma expulsou o meu povo de uma terra que é nossa desde o tempo da escravidão. Todo mundo tá cercado de eucalipto, respirando o veneno que eles colocam nas plantas.

Os rios todos que existiam aqui em volta do Angelim secaram. As lagoas, os peixes, tudo sumiu debaixo do eucalipto. A vida morreu aqui.

Eucalipto não é vida, eucalipto é morte.

Nessa terra estão enterrados meus pais e meus avós. A firma diz que a terra é dela, mas não é, foi tomada de nós. Meu povo tá enterrado aqui.

Eu vou morrer aqui, não vai sobrar ninguém pra contar a história. Nossa história vai se apagar.

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domingo firmiano - quilomola es

Meu nome é Domingo Firmiano dos Santos, tenho 52 anos e também sou conhecido por Chapoca.

Eu denuncio há mais de trinta anos a violência da Fibria contra as comunidades quilombolas do Sapê do Norte.

A Fibria conquistou terras na base do terrorismo, da fraude e da força bruta, usando policiais e oficiais do Exército para ameaçar o nosso povo. Chegaram aqui avisando que a terra tinha dono e que devíamos sair.

Nosso pessoal era analfabeto, não sabia ler documento, não tinha como se unir contra a empresa. Hoje ela domina toda essa região, financia campanha de governador, de deputado.

Vários prefeitos da região são financiados pela Fibria. Em todos os municípios onde tem eucalipto, a Fibria controla a prefeitura.

É um poder gigantesco.

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mulher lideranca es

Meu nome é Luzinete Serafim Blandino, tenho 53 anos de idade e moro em São Domingos, uma comunidade quilombola localizada no norte do Espírito Santo. Sou prima-irmã de Pelé, o homem contratado pela AracruzFibria para convencer o nosso povo a entregar as terras.

Sou uma das principais lideranças da comunidade São Domingos, que há trinta anos luta contra a violência da empresa e do Estado.

Hoje, estamos inviabilizados economicamente. Não temos mais terra para trabalhar. Estamos cercados pelos eucaliptos e vivemos de cesta básica e de bolsa família. Não é o que queremos.

O que queremos é nosso território. Somos trabalhadores rurais, nossos ancestrais chegaram há mais de 150 anos. Os problemas econômicos não irão nos destruir e a Fibria sabe disso.

O problema é que estamos sendo dizimados como cultura, como povo, como nação. Estamos sendo riscados do mapa, sufocados pela ação criminosa de grupos econômicos que atuam sob a simpatia e o estímulo do governo brasileiro.

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jaqueira e eucalipto

Comments (5)

  1. Paulo,
    coordeno para a Fiocruz um projeto chamado Mapa de Conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil (http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/), no qual este e outros casos estão presentes. E, embora o blog não tenha qualquer relação com ele exceto a minha presença em ambos, acabou por ser a principal fonte de informações para selecionarmos os conflitos a serem pesquisados.

    Digo isso meio que à guisa de um micro inventário gramsciano: não sou exatamente uma neófita, quer no campo acadêmico, quer no político.

    Acontece que meu posicionamento é radical, e o mirante a partir do qual olho o mundo é o de compromisso pleno com as lutas dos povos e comunidades, do campo e urbanas. Com certeza não preciso dizer que isso significa ser também radicalmente contra uma lista de seres e coisas, entre as quais incluo com certeza os monocultivos. E me refiro a todos os monocultivos, embora saibamos a diferença que existe entre uma espécie exótica, como é o eucalipto, e uma araucária, que levaria dez anos mais para crescer mas não condenaria populações, flora, fauna, lençol freático etc ao envenenamento por agrotóxicos.

    De qualquer forma, como escrevi anteriormente, respeito suas opiniões, na mesma medida em que divirjo delas.

    Tudo de bom,
    Tania Pacheco.

  2. Perfeita a ordem, Elizabeth: aperto no peito, nó na garganta e grito de revolta. Mas não só… Parei meu trabalho ontem especialmente para ir buscar esse material e construir essa chamada para ele, porque achei era hora de fazê-lo. Socializar essa coisa vergonhosa e a indignação que ela provoca…

  3. Tristeza, aperto no peito, reportagem que deixa um nó na garganta e um grito de revolta.

  4. Tânia, aí está uma bonita reportagem, humana e sensível. Situações parecidas foram vividas, há muitos anos, pelas populações deslocadas pelos canaviais, e mais reentemente, pelas plantações de soja, pelos laranjais extensos e por muitas outras monoculturas. O sofrimento moral e físico das populações que, de uma forma ou outra, são empurradas ao torvelinho das monoculturas extensivas é, em muitos aspectos, semelhante. As questões ambientais também: todas as monoculturas modernas são “silenciosas”: a densidade das plantas, o uso de inseticidas e herbicidas e outros fatores contribuem para um despovoamento.

    Não é a planta em si que causa isso, mas a forma como é plantada. No caso do eucalipto, se a densidade de plantio for baixa, ele não tem impacto negativo algum no ambiente e sustenta, de fato, uma variada população de animais e plantas no seu entorno. Aqui como na Austrália, onde o eucalipto é nativo. Aliás lá ele se expande por imensas áreas, mas numa densidade baixa, e sustenta uma fauna muito curiosa e bonita. Infelizmente, para que se tenha lucro com o eucalipto, ele tem que crescer em alta densidade, para ser linheiro e para que se produzam várias toneladas de madeira por metro quadrado. Se trocássemos o eucalipto por ipê, cedro, maçaranduba ou outra espécie nativa qualquer, o problema seria essencialmente o mesmo. O agricultor não opta pelas nativa porque as árvores crescem muito devagar e só podem ser cortadas depois de 15 ou 20 anos.

    Minhas observações sobre o cultivo do eucalipto em nada diminuem a verdade que está dita no texto, apenas
    a) ampliam para outros monocultivos adensados os impactos e o sofrimento das populações que os cercam e têm que conviver com eles.
    b) esclarecem que não é a espécie de planta, mas a forma de cultivar que está na base de todo o sofrimento.

    Aqui onde vivo o sofrimento das populaçoes foi bem historiado pelo José Lins do Rego,na forma de romance, e por vários pesquisadores, de forma mais objetiva, mas talvez menos impactante.

    Cordiais saudações
    Paulo Andrade

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