Por Cândido Grzybowski, no Canal Ibase
O momento é difícil e há muita confusão no ar. Os sinais de crise não vê quem não quer ou porque as crises do “povão” não lhe dizem respeito, [ou porque] ocupa outro lugar onde as mazelas do cotidiano não chegam. Não adianta negar, os preços do dia a dia, aqueles do viver enfim, estão loucos. Os produtos e serviços, mesmo os mais fundamentais como alimentação, energia, escola, pequenos consertos de água e luz, descarrilaram. Nem falo daqueles ligados à imagem e à autoestima – cabelo, massagem, academia, roupas gostosas, etc – que podem ser adiados, mas afetam identidade e satisfação pessoal – que estão disparando sem controle. E o fantasma do desemprego e da perda da renda mensal? Até parece que resolveu encarnar e está aí pegando gente na esquina, muita gente. Já fazia tempo que o país não estava em tal enrascada. O que fazer?
O pior é que todos cenários apontam para uma piora geral. Peguemos a questão fundamental da geração de novos empregos e manutenção dos atuais. Depois de uma incrível expansão de empregos, que inverteu o tamanho do trabalho informal em favor daquele de carteira assinada – com direitos, diga-se de passagem –, com aumentos reais de salário mínimo, estamos agora embicando para o fundo do poço. Sou dos que atribuem a empregos gerados e ao aumento do salário mínimo a fundamental mudança da última década na condição dos condenados a viver na pobreza e miséria entre nós. Bolsa Família foi tábua de salvação a afogados. Aumento de empregos e salários funcionou como alavanca de emancipação, ao menos econômica, se não social e política.
Bem, os ganhos obtidos por políticas ativas de inclusão social agora estão simplesmente derretendo, mais rápido do que as calotas geladas dos polos da terra. Instalou-se no centro, novamente, a oposição, nada democrática e profundamente injusta, entre salvar capitais ou salvar gente. Esta é a triste verdade do momento que vivemos neste começo de 2015. Aliás, na fumaça que envolve a conjuntura, a única coisa evidente é o esforço de voltar a submeter tudo aos ditames do grande capital econômico e financeiro, mas ele camuflado, sem nacionalidade, sem identidade clara, sem cara de gente e sorrateiro. O primeiro grande resultado está aí: o desemprego está para explodir, a política de ajuste é no sentido de flexibilizar o seguro desemprego. Uma bomba social, que mata sem piedade, mas … “não tem escolha”. Será?
Preciso reconhecer que as brumas da conjuntura obscurecem tudo. Está difícil saber o que fazer. Há a escandalosa corrupção que manietou a Petrobras – nosso bem comum empresarial maior – e que, com a paralisia de seus investimentos, está afetando profundamente a economia brasileira, dado o seu papel de agência indutora do desenvolvimento. Claro, podemos discutir acertos e excessos da tal “Operação Lava-Jato”. Diferentemente de muitos no campo da própria esquerda, penso que o problema na Petrobras, porém, não foi gestado por tal operação legal, que espero leve a termo o processo de julgamento dos envolvidos na corrupção, seja quem for. A Petrobras vive ameaçada, e neste momento o perigo é grande, pelas forças das grandes corporações privadas interessadas na sua total privatização. A desestabilização da Petrobras não está nos processos legais contra corruptos e corruptores em seus contratos, mas está na especulação e nas armas do tal mercado, sempre à espreita de oportunidades para atacar da forma mais predatória possível. Agora, com o apoio da grande mídia, que não esconde as suas preferências na disputa, a guerra contra a Petrobras e a defesa da revisão profunda do modelo constituído na exploração do petróleo voltou a ser aberta.
O mais grave na conjuntura, porém, me parece ser a política de ajuste formulada pelo ministro Levy e adotada pelo governo, política de ajuste das demandas e da vida que emanam da sociedade aos tais ditames do mercado. O foco central da política econômica é atender mercados, não gente concreta, seus direitos, seus empregos, suas condições de renda.
Vejo perigos, muitos perigos. As lutas começam a se esboçar no meio da bruma. A gente não está sabendo pelo que lutar e a que resistir. Parece que todos estamos à caça de bandeiras mobilizadoras para nossas causas. Como os tempos são difíceis, penso que precisamos voltar a por na mesa princípios e valores básicos, incontornáveis, essencialmente éticos, mas que precisam ocupar lugar fundamental na disputa política no mundo de hoje. Lembro, em primeiro lugar, a democracia. Ela pode ter sido “roubada” pelas forças constituídas legalmente, virando algo formal, de baixa intensidade, sem capacidade de tornar os inevitáveis conflitos e lutas entre nós em inspiração e em forças de transformação, na diversidade e no respeito mútuo. Porém, democracia, mesmo frágil, é melhor que qualquer outro regime e ela mesma condição indispensável para que seja democratizada e mais intensa. Sem democracia seremos jogados ao arbítrio irregulado dos mais fortes. Por difícil que seja, estamos diante da necessidade de construir trincheiras cidadãs para pensar livremente sobre o essencial que é a solidariedade para a liberdade e a igualdade, o quanto temos que avançar no respeito à diversidade, o como lidar com nossos comuns redescobertos como a água, o clima, os territórios em que vivemos, a cidade agredida, a cultura que nos une, o imaginário que nos cimenta como povo.
O momento exige “bastas” e resistências intransigentes do tipo “por aqui não passarão” e “ninguém tasca” o que é bem público, de todos portanto. Precisamos ser radicais no garantir o direito de todo mundo de ir para a rua, manifestar, lutar, mas não podemos tolerar a falta de liberdade, a repressão ou deslegitimação de quem quer que seja. Ninguém tem a absoluta verdade, pois democracia é mais de regras comuns, de disputas e acordos possíveis. Todos tem a ganhar no confronto democrático. Defendemos a institucionalidade democrática, mas não a tomamos como algo completo, que não pode ser mudado. A Reforma Política está no nosso colo como batata quente, dado o escandaloso financiamento de campanhas políticas por empresas. Mas não podemos engolir em seco o que hoje é hegemônico como proposta no Congresso. Ainda dá tempo para mudar. Temos que enfrentar tal questão com a radicalidade que ela exige.
Outra frente a exigir mudanças profundas é a não reconhecida “guerra civil” larval entre nós, que mata até mais que guerras reais em curso. A violência no cotidiano , particularmente nas favelas e periferias de nossas grandes cidades, deve ser encarada com propostas e ações democráticas radicais. A instalação de polícias de ocupação, como as UPP demonstram, está longe de garantir o direito republicano de segurança.
Uma outra frente de luta incontornável é o fato que a democracia não tem como avançar enquanto o direito cidadão à comunicação for confundido com o direito dos proprietários dos meios de comunicação. Que eles “plantem” o que quiserem como informação e quem quiser que o compre. Mas o Estado democrático precisa garantir o direito à visibilidade e à voz de toda a diversidade cidadã, esta é a questão central em tal debate.
Enfim, a agenda democrática radical precisa emergir nesta bruma, sem o que não veremos a luz no final do túnel. A prioridade é não voltar atrás na democracia conquistada com tanta luta 30 anos atrás e nem perder os pequenos, mas significativos, ganhos em termos de emancipação social de grande parcela da população brasileira “batalhadora”, na feliz expressão de Jessé Sousa. A democracia radicalizada é porta de possibilidades para avanços cidadãos e não pode ser confundida com dificuldades e confusões na conjuntura, nem com as limitações institucionais, sempre históricas e passíveis de mudança.
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