Ylka Oliveira – Asacom
Em 20 de Novembro é celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra, mas o que era para ser conquista ainda é luta para os povos de comunidades quilombolas de todo o País. O sonho da titulação, demarcação e certidão de seus territórios se arrasta em processos. Enquanto isso, os povos tradicionais mostram resistência através da sua cultura e da religião.
As mobilizações do movimento social negro, na década de 1980, garantiram a conquista do artigo 68 da Constituição Federal de 1988, que trata do direito à demarcação dos territórios quilombolas. Embora esteja impresso na Constituição, ainda assim é um direito ameaçado pelos interesses do agronegócio, de mineradoras, de indústrias e se choca com a luta pela manutenção dos povos quilombolas em suas terras, que acabam muitas vezes sendo expulsos por fazendeiros e grileiros em regiões de constante disputa e conflito. Neste 20 de novembro, data de celebração do Dia Nacional da Consciência Negra, é perceptível que a luta de cor, de raça, credo, celebrações culturais e contra a dominação territorial vem perpassando gerações de famílias, que fazem da palavra resistência uma bandeira para dar continuidade à luta.
Já se passaram 26 anos de Constituição, mas somente 120 comunidades quilombolas foram tituladas – existem mais de 5 mil registradas em todo o país. No estado do Piauí, a comunidade quilombola Custaneira, que fica a 8 km da sede do município de Paquetá, na região semiárida, tem a cultura como sua fonte de resistência para fincar os pés no lugar onde nasceram e viveram seus antepassados. É através da dança, da religiosidade, da Roda de São Gonçalo, do Reisado de São Benedito, do Lundú de Lezeira e do Samba de Cumbuca, que as mais de 50 famílias da Custaneira mostram sua força e tradição.
O presidente da Associação da Custaneira, Arnaldo Lima, o Naldo, de 36 anos, conta com orgulho que foi a cultura que os manteve lá até hoje, numa terra que no passado foi cercada por casas de engenho e senzalas. As capelas da região mantêm sepultados os coronéis que dominaram e oprimiram o povo afrodescendente. “Foi pela cultura que nos manteve até aqui. O povo foi negado de contar sua história, muitas vezes eles negaram para não lembrar o que passaram. Mas tenho orgulho dessa história. Nossos bisavôs foram escravos e souberam repassar com valor e por isso estamos aqui hoje”, conta Naldo emocionado.
São nas noites de rezas, de batidas do tambor, cabaça, lata, triângulo, maracá e pandeiro (instrumentos produzidos na comunidade), que as famílias se reúnem para conversar sobre passado e futuro. A prosa segue noite afora regada pela bebida aluá (feita com tamarindo, milho, farinha, rapadura, cravo, canela e aruá doce), acompanhada da dança para os orixás e da louvação típica de quem é do terreiro. Essa festa se repete durante o 8º Festival da Consciência Negra, que acontece nesta quinta (20) como forma de celebrar o Dia. A cultura é o símbolo da resistência no quilombo, mas já se passaram mais de 150 anos de surgimento da comunidade, segundo contam os antepassados de Naldo, e o seu povo ainda luta pela posse e titulação da terra.
Para Naldo a maior conquista é ter a posse da terra, mas isso ainda não foi concretizado. Para ele, se deve a um processo lento de demarcação no Piauí. Ele conta que de 164 comunidades quilombolas identificadas, não há nem 10 demarcadas e tituladas. “Ser quilombola hoje não é fácil. Para os filhos de fazendeiro é invenção do povo negro de querer tomar terra. Os negros que aqui viveram não conseguiram garantir em documento o espaço. Garantimos somente o certificado da Fundação Palmares. Nós não tomamos terra de ninguém, mas defendemos o espaço para que todos tenham vida”, conclui.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), até 2010, havia 104 territórios quilombolas em 14 estados com títulos expedidos. Segundo informações no site do Instituto as dificuldades estão relacionadas a conflitos com o agronegócio e à falta de documentação referente à titulação, além de sobreposição de suas áreas com outras protegidas, como as Unidades de Conservação. Foi o decreto Nº 4.887 de 20 de novembro de 2003 que estabeleceu o INCRA como responsável por regulamentar a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras. Enquanto a Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos é emitida pela Fundação Cultural Palmares. Segundo o site da Fundação existem hoje mais de 1.500 comunidades certificadas em território nacional.
Somente após a posse da Certidão de Registro emitida pela Fundação é que as comunidades podem encaminhar ao INCRA de seu estado uma solicitação de abertura de processo para regularizar o território. A partir daí será feito um estudo de área para publicação de Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID); depois serão analisados e julgados qualquer tipo de contestação e se aprovado será publicada uma portaria declarando limites do território. Depois será feita a regularização fundiária com a demarcação e a retirada de pessoas não quilombolas da área, bem como a desapropriação de áreas em posse de particulares ou de entes públicos. Por fim será concedido o título de propriedade que é coletivo e sairá em nome da associação de moradores.
Para a coordenadora executiva nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ ), Edna da Paixão Santos, a questão da terra é delicada, pois as famílias dão entrada no processo de demarcação e titulação no INCRA, mas os processos se arrastam por anos. “O INCRA alega que falta pessoal para fazer os RTIDs (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação). Enquanto isso as comunidades quilombolas ficam à mercê dos fazendeiros, grileiros, mineradoras, agronegócio e até mesmo dos grandes projetos do governo federal”, avalia. A CONAQ tem atuação nacional e internacional e está ligada as comunidades quilombolas nos estados através de comissões estaduais, confederações estaduais e coordenações estaduais.
Edna é do quilombo de Boa Vista, situado a 6 km da sede do município de Afrânio, no sertão do estado de Pernambuco, onde moram aproximadamente 50 famílias. A comunidade não difere das demais existentes no país. É fruto de um processo de lutas, discriminação, mas também de muita resistência. “Estamos aguardando a entrega da certificação da Fundação Cultural Palmares que está prevista para dezembro. Depois é que poderemos dar entrada no INCRA para conseguir a titulação”, explica a coordenadora. Ela conta que hoje moram “espremidos” em uma pequena área de terra nos fundos de pasto da Fazenda Boa Vista.
A fonte de renda provém da agricultura familiar e de programas de transferência de renda do governo federal. Mas a situação atual do quilombo Boa Vista não garante trabalho e renda para todo o povo remanescente. O êxodo de parte da população faz com que as famílias abandonem sua cultura, identidade e territorialidade em busca de trabalho fora. Falta terra para plantar e produzir seus alimentos. Consequentemente, o acesso à segurança e soberania alimentar é vulnerabilizado. Edna revela que o povo acaba aderindo à comidas industrializadas e deixam se perder no tempo a rica cultura da culinária de origem.
Os que resistem encontram também na cultura e na religião uma fonte de força. Organizam-se num grupo de samba de roda ou nas rezas e novenas promovidas na comunidade Araçá, vizinhança do quilombo. Para o Dia da Consciência Negra será realizada uma semana de oficinas para estudantes das escolas municipais com aulas de capoeira, de penteados afros e confecção de vestimentas para o tradicional desfile da beleza negra. A programação acontecerá na primeira semana do mês de dezembro.
Conquistas em lei – A coordenadora da CONAQ refaz o caminho percorrido até então para a conquista de leis e direitos pelo movimento negro. Lembra o que dita o artigo 68 da Constituição: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos”. Porém, Edna destaca que o artigo não tem sido suficiente para assegurar a posse das terras das comunidades quilombolas. “O decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003 que regulamenta o artigo 68 sofre uma ação da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) impetrada pela bancada ruralista do congresso nacional. Fora a PEC 215, e por aí vai a nossa luta constante para garantir os nossos direitos e manter o que já conquistamos”, finaliza.
Sobre a PEC 215 que Edna cita, existe na esfera do Legislativo um Projeto de Emenda Constitucional que interfere na discussão de demarcação de territórios e põe em risco o futuro das comunidades, bem como as que já conquistaram titulação. Todas as áreas já remarcadas podem ser revistas, caso a PEC seja aprovada no Congresso Nacional.