Em O Pantaneiro
Era julho de 1997 e eu estava indo pela primeira vez visitar a Reserva Indígena Kadiwéu, a pedido da então prefeita de Porto Murtinho, Myrian dos Santos, acompanhado pela Secretária de Saúde, Estela Márcia Rondina Escandola (na época tinha no sobrenome “Reis”, se bem me lembro) e por um rapaz cujo nome militar era De Pinho. Juntos, os três em uma velha Toyota, cruzamos as estradas de terra que interligavam fazendas e aldeias daquele extenso município, enfrentando muita chuva e certo desconforto.
A primeira aldeia a ser visitada foi a São João, distante uns oitenta quilômetros da cidade Bonito e habitada por índios de distintas etnias. Enquanto Estela Márcia tratava dos assuntos da Saúde, eu deveria realizar reuniões com cada comunidade (na época eram cinco aldeias no interior da Reserva: Barro Preto, Bodoquena, Campina, São João e Tomázia) sobre a Educação Escolar que desejavam para as crianças e os jovens indígenas.
Lembro-me que na primeira reunião, em que eu estava diante de cerca de duzentas pessoas, iniciei minha fala referindo-me à importância de se ter uma educação específica e que no caso daquela aldeia deveria ser uma escola voltada para os interesses dos Kadiwéu. Foi quando vi um ar de reprovação nos rostos daqueles homens e mulheres indígenas e percebi que estava diante de uma maioria que não se reconhecia Kadiwéu, embora vivessem dentro da Reserva Kadiwéu. Retomei minha fala, depois de certa hesitação, e perguntei, então, se por acaso eles seriam Terena ou de outra etnia. Um silêncio tomou conta da plateia e, timidamente, um senhor levantou a mão pedindo a palavra. Com a voz embargada, este senhor ficou de pé e disse que todos ali tinham medo de dizer quem eram realmente, pois tinham passado por muitas provações na vida, tinham sofrido perseguições e perdido suas aldeias, ao longo de uma história de dor e extermínio.
Jamais poderia imaginar que ouviria aquelas palavras que até hoje não me saem da lembrança: “– Nós somos Kinikinau, moço! Ki-ni-ki-nau!”. Atônito, eu disse espontaneamente: “– Não é possível! Eu li em um livro que vocês estão extintos! Que vocês não existem mais…”. Os índios ficaram tão perplexos quanto eu e nada responderam de imediato. O livro em questão era Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terêna (Editora Francisco Alves, 1976), de autoria do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira. A história daqueles homens e mulheres guerreiros, ou como eles se autodenominam Koinukunôen, contarei em outro texto.
Esta semana, escrevi a vocês sobre os Kinikinau, pois estou me preparando para ir a Mato Grosso do Sul, reencontrá-los mais de dezessete anos depois daquele primeiro momento embaraçoso, a fim de participar da I Assembleia do Povo Kinikinau (Aldeia Cabeceira, Nioaque, de 06 a 09 de novembro de 2014). Na manhã do dia 07/11 relembrarei essas e outras histórias vividas junto a esse povo resistente e que muito me ensinou (inclusive, que não se deve acreditar em tudo o que está escrito nos livros…)!
* Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Aquidauana e Pós-Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília. Atualmente, atua como docente e pesquisador na Universidade Federal do Amapá/Campus Marco Zero do Equador.
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