Rosaldo de Albuquerque Souza: Por imposição do nosso ‘órgão tutor’, não tínhamos o direito de nos autodeclarar Kinikinau

Rosaldo Kinikinau em foto de Emilia Silberstein, do final de 2012, quando terminava o mestrado na UnB com trabalho sobre a reconstrução identitária de seu Povo
Rosaldo Kinikinau em foto de Emilia Silberstein, do final de 2012, quando terminava o mestrado na UnB com trabalho sobre a reconstrução identitária de seu Povo

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Antes que algum juiz descubra isso na hora de anunciar alguma decisão definitiva, vamos concordar: o Povo Kinikinau – ou Koinukunoen – com certeza não estava no seu território tradicional em 1988, quando a chamada Constituição Cidadã foi promulgada. Aliás, ainda pior: oficialmente ele estava simplesmente extinto, na ocasião! Graças à ação de diferentes instâncias governamentais, os Kinikinau não foram apenas expulsos de sua terras. Foram destituídos de sua própria identidade, com tudo o que isso significa, e obrigados a se transformarem em Terena pelo órgão que deveria protegê-los: a Funai.

Mas eles não aceitaram essa morte por decreto. Mantiveram viva a força da resistência e, entre os dias 6 e 9 de novembro, realizaram sua 1ª Assembleia. No final dela, instituíram o Ipuxowoku Hou Koinkunoe (Conselho do Povo Kinikinau) e lançaram a sua Carta, como primeiro passo para a reconquista de sua identidade e de seu território.

Professor de biologia concursado, Rosaldo de Albuquerque Souza nunca se perdeu de suas origens e é agora um dos 12 integrantes do Conselho Kinikinau. Na entrevista a seguir, feita por e-mail, ele fala sobre seu Povo e sua luta.

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Combate – Fiquei comovida lendo sobre a 1ª Assembleia e, depois, a Carta do Povo Kinikinau. Sei que você está desde o início na luta pelo reconhecimento do seu Povo e pela demarcação de suas terras. Quando e como foi que ela se iniciou?

Rosaldo – Iniciou-se na década de 1990, com o interesse próprio dos anciãos da Aldeia São João, do chefe de posto da Funai, Olivar Brasil, e do antropólogo indigenista Giovani José da Silva. Saliento que nascemos sabendo que não éramos Terena, mas, por imposição do nosso ‘órgão tutor’ [a Funai], não tínhamos o direito de nos auto declarar Kinikinau. Por isso ficamos tanto tempo na invisibilidade. O nosso grande líder in memoriam Leôncio Anastácio disse que muitas famílias esconderam-se nas aldeias que estavam se formando após a guerra do Paraguai e nas fazendas, para trabalhar a troco de comida. Assim, foram ‘desaparecendo’.

Combate – Há mais de cem anos, vocês foram expulsos de seu território pelo SPI, e suas terras foram entregues a fazendeiros. Você quer contar um pouco de como o Povo Kinikinau foi destituído de sua identidade, de seu território, e colocado na TI Kadiwéu e entre os Terena?

Rosaldo – Conforme já contei um pouco acima, na década de 1910 chegou um senhor, que se identificou apenas como Gaúcho, na aldeia dos Kinikinau em Agaxi, perto de Miranda, e informou que havia comprado aquelas terras do Governo, e que o SPI lhe havia dado ordem para ocupar o local. Os homens ficaram com muito medo, mas não saíram.

Passados mais alguns dias, o mesmo homem veio acompanhado de uns 15 jagunços e lhes disse que o gado deles estava chegando, então deveriam sair, ou perderiam tudo o que tinham. Mais que depressa ajuntaram tudo o que puderam, venderam algumas coisas e saíram sem rumo.

O transporte que usavam era uma carreta puxada por bois, que eu calculo que percorria cinco km por hora, chamada de “carretão”. Fizeram vários acampamentos em terras desocupadas, mas sempre aparecia um suposto dono e os expulsava. Precisavam pedir socorro em fazendas perto da estrada.

Por volta de 1918, encontraram uma terra que ficaram sabendo que era devoluta. Essa terra já tinha o nome de Corvelo; não se sabe quem a denominou assim.  Ali criaram suas casas, plantaram e criaram animais. Próximo a 1938 apareceu o ‘dono’ da terra e lhes disse que deveriam procurar a terra deles.

Mais uma vez estavam desorientados, mas lembraram de procurar o SPI e encontraram um funcionário que lhes indicou a terra dos Kadiwéu. Os homens foram até aquela terra indígena e foram bem recebidos. O Cacique de uma aldeia antiga lhes ordenou que fizessem suas casas e buscassem suas famílias. Assim foi feito. Intitularam aquela terra de São João por que a chegado do grupo foi no dia 13 de Junho de 1940, um dia de festa junina.

Combate – Outro crime praticado contra vocês foi o fato de muitos terem sido registrados pela Funai como se fossem Terena, obrigados a esconder identidade, cultura e tradições. O site do ISA fala que os Kunikinau somariam hoje 250 indivíduos; soube que o professor Giovane José da Silva fala de 600; outra pessoa, a Ana Beatriz Lisboa, da Funai, me disse que talvez cheguem a mil, considerando também os filhos e filhas das pessoas identificadas como Terena. Vocês têm certeza ou, pelo menos, uma ideia a respeito?

Rosaldo – Eu acredito que existem muitos Kinikinau entre os Terena que não se identificam como tal por medo. Medo de perder seu espaço dentro daquela comunidade em que vivem há muito tempo. Se todos os descendentes se declarassem, chegaríamos a mil, mas prefiro ficar com os 600 entre os que já têm o Registro de Nascimento em Kinikinau e aqueles que se autodeclararam, mas continuam com o registro Terena.

Combate – Vocês estão espalhados por diversas Terras Indígenas. Além da TI Kadiwéu, estão também em áreas Terena, como a Mãe Terra, Limão Verde, Cachoeirinha, Cabeceira, Lalima e Nioaque. Soube que a reivindicação de vocês seria por um território em Miranda. Onde e de quanto estamos falando, em termos de espaço, nesse Mato Grosso do Sul já tão disputado com os ruralistas?

Rosaldo – Eu sei que alguém tem esse cálculo, mas ainda não nos foi passado. Eu estive consultando o nosso antropólogo, mas não obtive resposta. Sabemos que fica no distrito de Agaxi, próximo a Miranda.

Combate – É correta a informação de que vocês vão pedir para serem retirados do território Kadiwéu e ficarem instalados provisoriamente ao lado da Terra Indigena Pilad Rebuá, também em Miranda?

Rosaldo – Não. Essa informação não procede. Algumas famílias estão saindo da aldeia, e outras já saíram, mas ainda há um bom número de Kinikinau na São João. Esse espaço que nos foi proposto deve ser analisado e, após a aprovação do grupo, poderíamos ter uma resposta, mas não há intenção de pedir remoção por enquanto.

Combate – Me parece muito importante o fato de o Conselho do Povo Kinikinau, do qual você é um dos 11 integrantes, já nascer definindo que “atuará em colaboração com o Conselho do Povo Terena e Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá e integrará a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, APIB”. O fato, inclusive, de a 1ª Assembleia de vocês ter acontecido em terra Terena, e de a 2ª também estar programada para se dar entre esse Povo irmão, mostra essa união na luta já está acontecendo de fato. Vocês têm algum receio de que o início do processo de constituição do Grupo de Trabalho para reconhecer o território tradicional Kinikinau e seus desdobramentos possam apesar disso levar a alguma disputa entre vocês?

Rosaldo – O povo Kinikinau é e sempre foi criador de gado e cavalos, isso faz com que as famílias necessitem de espaços de campo para continuar suas atividades agropecuárias. Lá mesmo na TI Kadiwéu em que vivemos atualmente já existe essa disputa: quando menos esperamos, um patrício aumenta sua área de criação e deixa desvantagem para outros. Creio que essas disputas não desunem o grupo; essas coisas nunca geraram nenhum confronto pessoal ou mortes na aldeia.

Combate – Sobre as relações dos Kinikinau com os Kadiwéu, sei que não vêm sendo muito tranquilas, havendo até mesmo uma disputa pelos trabalhos em cerâmica desenvolvidos pelas mulheres. Você quer falar a respeito?

Rosaldo – Sim, eu me sinto à vontade para falar, pois a disputa pelo espaço não é com os Kadiwéu de forma geral, mas com algumas famílias que, por praticarem delitos nas outras aldeias deles mesmos, se abrigaram junto aos Kinikinau e ali vivem e continuam a praticar as desordens e desrespeitos com as nossas famílias. Então, eu reafirmo o que disse na Assembleia Kinikinau: não tenho nenhum inimigo Kadiwéu, tanto é que fiz um curso de magistério na Aldeia Alves de Barros e fui muito bem recebido lá. Quanto à cerâmica, não há uma disputa, mas algumas pessoas pensam que as ceramistas Kinikinau copiaram seus desenhos, o que é um equívoco.

Mais informações:

Ipuxowoku Hou Koinkunoe (Conselho do Povo Kinikinau): Carta do Povo Kinikinau

Após um século de descaminhos, povo Kinikinau realiza sua primeira assembleia fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver

Histórias de Admirar: Os Kinikinau, por Giovani José da Silva* 

 

 

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