Ouça a matéria original por Lourdes Garcia-Navarro em inglês na Rádio Pública Nacional Americana, NPR, aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil
Lourdes Garcia-Navarro – Rio On Watch
Em 11 de junho–um dia antes da Copa do Mundo começar–dois policiais prenderam três adolescentes negros no Rio de Janeiro. Os três não tinham cometido crime algum, mas tinham um histórico de pequenos delitos.
Os policiais os levaram para o alto de um morro arborizado da cidade. Um dos jovens foi morto com um tiro na cabeça, o segundo foi baleado na perna e nas costas, abandonado para morrer. O terceiro escapou.
Sabemos o que aconteceu naquele dia porque os policiais deixaram suas câmeras do carro de patrulha ligadas e os vídeos vieram à tona numa matéria da TV Globo.
“Nós ainda nem começamos a bater ainda e você já tá chorando?” um dos policiais diz. “Pare de chorar! Tá chorando muito! Seja homem!”
Mas os três rapazes não eram homens–tinham cerca de 14 anos de idade.
Em seguida, os policiais são ouvidos dizendo que “têm que matar os três”.
E concluindo, dizem: “São dois a menos, se fizermos isso toda semana, podemos reduzir o número deles e alcançar a meta”.
Eles estavam supostamente se referindo ao objetivo oficial de reduzir a criminalidade na cidade antes da Copa do Mundo.
O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Em 2012, 56.337 pessoas foram assassinadas. Compare isso com os EUA, onde menos de 15 mil pessoas morreram de forma violenta no mesmo ano, em um país com uma população 60% maior que a do Brasil.
Mas essas estatísticas escondem um código de cores: o Brasil na verdade tem ficado muito mais seguro para pessoas brancas. Na última década, os homicídios entre os brancos diminuíram em 24%, ao passo que entre a população negra eles aumentaram 40%.
“Aqueles que são brancos podem pagar e usufruir maior segurança, e nós estamos vendo reduções de homicídios nesta faixa”, diz Robert Muggah do Instituto Igarapé, com sede no Rio de Janeiro. “Aqueles que são negros e incapazes de pagar por sua segurança–a nossa sociedade está se tornando cada vez mais desigual–não têm acesso a esses bens públicos, e como resultado estamos vendo as taxas de homicídio subindo cada vez mais”.
Muggah diz que a população branca e rica no Brasil, pode pagar para ter mais segurança, seja na forma de cercas elétricas, ou prédios de apartamentos com portaria e segurança, ou condomínios fechados.
O resto da população tem que lidar com uma força policial que em 2012 matou cerca de 2000 pessoas–mais de cinco por dia. (De 2010 a 2012 nos Estados Unidos, um banco de dados do FBI mostra que a polícia matou cerca de 400 pessoas no ano).
“A elite e as classes médias toleram este tipo de repressão–e, de fato até a desejam”, diz Muggah. “Eu acho que há entre a população mais branca do Brasil, a sensação de que as populações negras são a fonte de grande parte dos vícios, da decadência e da violência da sociedade”.
E muitas vezes as populações negras moram aonde a repressão não é visível: pelo menos 22% da população do Rio de Janeiro vive em favelas ou bairros precários. Mais de metade desses moradores são afro-brasileiros.
Para entrar no vasto complexo de favelas da Maré, somos avisados que temos que manter as janelas do carro abertas para que os traficantes possam ver os nossos rostos e devemos nos mover lentamente. Eles estão preocupados com a infiltração de bandidos de facções rivais, já que uma guerra de territórios está sendo travada nesta parte da comunidade.
Estes não são pontos de inspeção formais, mas um grupo nos observa a cada esquina–traficantes de drogas, explica Patricia Sales Vianna, uma das diretoras da ONG local Redes da Maré.
No passado, traficantes vendiam seus produtos abertamente nas ruas movimentadas mas a Maré está agora em vias de ser pacificada–com a instalação de um programa do Estado em que o policiamento de tempo integral é implantado em determinadas favelas para expulsar os traficantes da área.
O programa tem tido sucesso mixto, mas na Maré, a história é diferente–aqui, é o exército que está no controle. Moradores da Maré chamam o programa de “ocupação”. Caminhões carregados com tropas de capacetes e fortemente armadas circulam pelas ruas. Os moradores têm a sensação de que estão no meio de uma guerra e não em uma operação policial.
Na Maré, explica Vianna, há comunidades muito pobres, com recursos muito baixos, quase sem oportunidades: da população de cerca de 140.000 da Maré, menos de 1% frequentou uma universidade pública, diz ela.
Um dos meninos que foi morto em 11 de junho era daqui. Seu nome era Matteos Alves dos Santos.
Viemos aqui para ver o pai dele, Thiago Virgilio dos Santos; ele vive em uma pequena casa com colchões no chão, e um sofá desfiado para sentar.
Ele diz que a única razão da morte de seu filho ter se tornado conhecida foi porque um dos meninos sobreviveu. Se ele não estivesse vivo para falar sobre o caso, nós nunca saberíamos o que aconteceu, diz ele–a morte dele seria apenas mais uma estatística.
Ele conta que não há maneira de acabar com sua dor.
Os dois policiais que mataram Matteos estão sendo julgados. O menino que sobreviveu está detido numa prisão juvenil; ele foi pego tentando roubar uma bicicleta. Seu advogado tentou colocá-lo no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas de Morte (PROVITA) porque teme por sua vida, mas lhe foi dito que o Estado não tem recursos para fornecer este tipo de proteção.
Nilson de Bruno Filho–o único chefe negro de uma Defensoria Público estadual–instituiu recentemente um programa de combate ao racismo no Rio de Janeiro. Ele explica porque que o caso envolvendo os jovens assassinadas [em junho], já esquecido, não recebeu muita atenção.
“Há um ditado que diz que ‘a carne negra é mais barata’. As pessoas não ficam chocadas ao ver uma pessoa negra morta, porque em suas mentes esta pessoa deve estar ligada a algum tipo de crime”, diz ele. “E, no Brasil, se uma pessoa está ligada à um crime, então ela pode ser morta”.
Nilson diz que há um sistema de dois níveis no Brasil baseado na cor da pele.
Ele diz também que o Brasil teve um dos períodos mais brutais e prolongados de escravidão nas Américas.
“De certa forma, não foi há muito tempo. Eu acho que algumas pessoas ainda vêem os negros como uma ‘coisa’”, diz ele. “Ainda é uma realidade em nosso país. Temos um caminho longo pela frente”.
Obrigado pela tradução à Thaís Rosa Pinheiro, mestranda da Pós Graduação em Memória Social na UNIRIO. Thaís pesquisa turismo de base comunitária em comunidades quilombolas.