É difícil entender como os alemães conviviam com a violência nos anos 30. Mas estamos indo pelo mesmo caminho
Seis jovens. Dois com 12 anos, um com 14, um com 15 e dois com 18. Foram vítimas de uma chacina em Duque de Caxias. Um dos meninos de 12 sobreviveu. Esta notícia não estampou a capa de nenhum jornal nacional. E também não mereceu a manifestação de nenhuma autoridade pública. É razoável que lidemos com normalidade com a execução de adolescentes? Não se trata de apontar o dedo para a imprensa. Apontemos para nós todos. Convivemos com normalidade com esses fatos.
Convivemos com normalidade com a morte de 1 milhão de brasileiros em pouco mais de duas décadas. É a maior tragédia da nossa história desde a escravidão. Alguns pensam: “O mundo é mesmo um lugar violento.” Não. Violento mesmo é o Brasil. São 56 mil homicídios por ano. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo. Desse total, 30 mil eram jovens com idade entre 15 e 29 anos. O homicídio foi também a principal causa da morte de adolescentes entre 12 e 18 anos (45,2%), em cidades com mais de cem mil habitantes. Conhecemos esses dados, mas naturalizamos o horror. Como se essas mortes fossem destino. Não eram. É uma escolha, resultado de escolhas que fizemos ou deixamos de fazer.
Um dos desafios de grandes pensadores do século XX foi tentar entender como tantos alemães lidaram com normalidade com a brutalidade da tragédia que ocorria por lá durante o holocausto. Como as pessoas podiam ir trabalhar, comprar seu pão, pensar em coisas triviais, enquanto corpos se acumulavam?
Uma dessas pensadoras, Hannah Arendt, descreveu esse fenômeno como a banalização do mal. As pessoas perdiam a capacidade de perceber a monstruosidade dos fatos. A ideia contemporânea de direitos humanos surge daí. A sociedade, o Estado, todos devemos nos indignar, nos sensibilizar, nos chocar, quando se violam direitos, quando se produzem tragédias. Achar isso normal não é humano.
É muito difícil, para nós, no século XXI, olhar para a Alemanha dos anos 1930 e compreender como eles conviviam com isso. Olhar para os nossos antepassados e compreender como se convivia com a escravidão. Mas nós estamos indo pelo mesmo caminho. Convivemos com uma tragédia de proporções indescritíveis com uma normalidade que não será perdoada pela História. E por quê? Não nos enganemos. Os que morrem são em sua maioria negros, são pobres, são invisíveis.
Não pensamos que, por trás do número de um milhão de mortos, há um milhão de mães, de familiares, de vidas roubadas, histórias interrompidas. Tornamos tudo isso invisível. Não se resolve o problema dos homicídios com um passe de mágica. Políticas públicas complexas são necessárias. Mas o primeiro passo é perceber que a tragédia não é banal, não é apenas um notícia de jornal, é chamar a atenção de que não queremos passar para a História como outra geração que tolerou a morte em massa de jovens. Não queremos que nossos netos tenham vergonha de nós.
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* Atila Roque é diretor executivo da Anistia Internacional Brasil. Pedro Abramovay é diretor para a America Latina da Open Society Foundation.