Judiciário e polícia postam-se para garantir o direito à especulação, quando perturbado por seres humanos buscando (que ousadia!) o direito de morar em alguma parte
Por Guilherme Boulos – Outras Palavras
A esquina da Ipiranga com a avenida São João, imortalizada em versos, testemunhou fatos bem pouco poéticos há menos de duas semanas.
Bebês sufocados com bombas de gás, pessoas desmaiando e outras sendo forçadas por policiais a deitar no chão molhado. Cadeirantes sem suas cadeiras de roda. Filhos perdidos das mães. Cenário de horror.
Ali, no cruzamento mais famoso de São Paulo, ficava até poucos dias a ocupação de duzentas famílias de sem-teto, no prédio do antigo hotel Aquarius, fechado e abandonado há mais de dez anos.
Não só este. Estima-se em 400 mil o número de imóveis desocupados na cidade de São Paulo. No Brasil, segundo o IBGE, são 6.052.000 imóveis nestas condições. Praticamente a mesma proporção do número de famílias sem moradia. Estão ali servindo à especulação imobiliária, esperando por alguma operação urbana ou PPP (Parceria Público-Privada) que lhes agregue valor com investimento público.
O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o direito à especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto buscando – que ousadia! – o direito de morar em alguma parte. Só no centro de São Paulo há mais de vinte ocupações com ordem de despejo. A prefeitura também conseguiu, na semana passada, ordem judicial para despejar a ocupação Chico Mendes, na região do Morumbi. Preparemos os olhos e o estômago para as cenas dos próximos capítulos.
Tratar problemas sociais como casos de polícia é sinal inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos Carajás ou no Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para sufocar as contradições da sociedade.
Foi assim na esquina famosa, no dia 16. E foi assim também, dois dias depois, em uma esquina nem tão famosa do bairro da Lapa. O PM Henrique Dias de Araújo atirou à queima-roupa em um camelô que tentava defender seu colega, agredido por outros dois policiais.
Carlos Augusto Braga, o camelô assassinado, já havia terminado o expediente e estava indo buscar o filho na escola. Segundo a família, planejava voltar ao Piauí, onde havia sido aprovado num concurso público. Não verá mais nem o filho, nem o Piauí.
O PM que o matou já respondia por outro assassinato, em março deste ano, quando atirou num morador de rua, supostamente em legítima defesa. Legítima defesa foi também a alegação do comando para o novo assassinato, até ter sido desmentido por um vídeo que flagrou o crime.
É impressionante como a reação de indignação a esses vídeos tem prazo tão curto de validade. E como o Judiciário contribui para a banalização da barbárie. Alguns dias depois do assassinato, o soldado já foi solto e pouco se falou do assunto.
O rito é padrão mesmo quando as provas estão aos olhos de, todos. Lembram-se vocês daquele pedreiro que foi assassinado por quatro PMs em frente de casa no Jardim Rosana, zona sul de São Paulo, em 2012? O vídeo saiu no “Jornal Nacional”, da TV Globo.
Algumas semanas depois, o bar de onde saiu a gravação foi palco de uma chacina, também cometida por policiais, onde sete pessoas morreram.
Sabem o que aconteceu? Os policiais da chacina, depois de reconhecidos e presos, já estão soltos. E os quatro que exterminaram o pedreiro foram absolvidos pelo Judiciário no mês passado.
Mas e as imagens? Ora, pedreiro, camelô, sem-teto, quem se importa?
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra malufista de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma oportunidade de por o Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no curto prazo, numa sociedade dominada pelo medo e pela violência.
Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais disso, mas a memória é curta.
O prefeito Fernando Haddad (PT), que poderia ter se contraposto, preferiu atribuir a violência do despejo da avenida São João a “oportunistas” e tratar o assassinato do camelô como “fato isolado”. Com medo das acusações levianas do Ministério Público de que favorece ocupações e em nome da Operação Delegada, que herdou de Kassab, perdeu uma excelente oportunidade de, no mínimo, ficar calado.
Assim terminou uma semana de barbárie. Com as autoridades políticas e o Judiciário convidando a todos que façam mais vezes. Afinal, com camelô e sem-teto pode.
Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.