A falácia democrática. Entrevista com Jacques Rancière

Jacques Rancière (Credits: Nienke Terpsma)
Jacques Rancière (Credits: Nienke Terpsma)

Gianni Carta, Carta Capital

Ironia das ironias foi o fato de “a direita americana antidemocrática” pretender exportar a democracia na invasão do Iraque em 2003, diz o filósofo francês Jacques Rancière a CartaCapital.

Em O Ódio à Democracia, a ser lançado em breve pela Boitempo (128 páginas, R$ 29), Rancière, 74 anos, rompe vários mitos construídos para inventar aquilo que acreditamos ser uma democracia. De saída, o conceito “pode significar diversas coisas bastante diferentes e contraditórias”. E eis outro mito rompido: o sufrágio universal, e a subsequente representação, não é uma forma democrática através do qual as pessoas exprimem suas preferências políticas.

CartaCapital: O senhor teve problemas com Althusser em maio de 1968 porque via uma diferença entre teoria e prática, mas também porque ele acreditava no poder do professor?

Jacques Rancière: Não tive conflitos com Althusser, como o aluno tem com seu professor. Fiquei impressionado, em maio de 1968, com o fato de a greve geral, o movimento, ter deixado em total contradição a doutrina de Althusser, a crítica da ideologia, a afirmação do primado da ciência. Althusser dizia que seus alunos eram pequenos burgueses. Do ponto de vista de Althusser, a revolta de 1968 não foi nada. No entanto, a revolta causou a maior greve de trabalhadores na história francesa. Passei a interpretar a teoria de Althusser como aquela na qual a ação política dependerá sempre da ciência transmitida por pessoas com a autoridade para fazê-lo. Testemunhei a contradição entre a tese marxista exacerbada e movimentos reais.

CC: Em Le Maître Ignorant (1987), o senhor defende a igualdade das inteligências. Por sua vez, seu livro atual estipula que a igualdade das inteligências depende da vontade e da condição social. Igualdade é um tema central em seu pensamento.

JR: O que disse sobre a igualdade é derivado em parte da minha pesquisa sobre a história da emancipação da classe trabalhadora e, em parte, da ideia de emancipação intelectual, desenvolvida no século XIX por Joseph Jacotot. O ponto central é o seguinte: a igualdade não é um objetivo distante, mas um ponto de partida. Falo sobre a igualdade de oportunidades. E, a partir desse ponto de vista, a emancipação é uma afirmação de capacidade: aqueles capazes de gerir um ateliê ou empresa podem discutir e deliberar sobre os assuntos da comunidade. Fundamental era dissecar essa inversão de posições. Existem oportunidades para pessoas desiguais, dominadas, para traçar o caminho da autoafirmação.

CC: O senhor é um filósofo por formação. Mas muitos críticos dizem ser impossível categorizá-lo, graças ao seu interesse por uma larga série de temas.

JR: De acordo com a igualdade das inteligências, o mesmo indivíduo é capaz de interpretar um texto literário, uma situação política, um filme. Pertenço à década de 1960, quando houve uma espécie de explosão no campo da filosofia. Michel Foucault, por exemplo, estava completamente fora do âmbito normal da filosofia. Interessou-se por hospitais, asilos, prisões. Se a filosofia tem um papel, é o de romper todas essas identificações e o de destacar uma espécie de capacidade intelectual das pessoas.

CC: A política também o interessa a partir da perspectiva da literatura. Entendo como Victor Hugo poderia formar uma opinião política. Mas como pode Joseph Conrad inspirá-lo politicamente?

JR: Há uma forma de política exclusiva à literatura. E essa forma de política não se limita a visões de mundo dos escritores, aos seus engajamentos ou às suas maneiras de representar a sociedade. Claro, há uma relação entre os dois tipos de democracia, mas elas são diferentes. Conrad faz parte de um movimento a envolver Flaubert, Joyce, Virginia Woolf. Quebram uma forma de autoridade que era inerente às estruturas narrativas tradicionais. Considere o prefácio de O Negro de Narciso (The Nigger of the “Narcissus”, 1897). Eis a possibilidade do herói fictício, mesmo em um sentido negativo. Conrad pertence a essa revolução democrática do romance, embora tenha uma posição reacionária como indivíduo: denunciou os anarquistas e revolucionários. Mas isso é interessante, pois há uma tensão entre o artista revolucionário e seu pensamento político.

CC: O termo democracia “é uma expressão de ódio” desde os tempos da Grécia, quando alguns achavam mais crível o governo da multidão. O ódio continua. A violência ligada ao ódio é novidade. O senhor escreve: a democracia pode criar a “coragem, por isso a alegria”. De que forma?

JR: Tentei dizer que a democracia não é mera forma de governo, ou um sistema igualitário. Ao contrário, a democracia é uma ideia extravagante. Expus a tese de um poder para aqueles isentos e sem títulos ao poder. Escrevi que, paradoxalmente, por causa da falta de poder há política porque há democracia. Há política devido ao poder de pessoas que não são nada, não têm qualidades especiais e não possuem títulos (ao poder). Há democracia nos recentes movimentos: “Primavera Árabe”, “Occupy” etc. Nestes casos se solidifica um poder das pessoas em estado de excesso, que é independente em relação ao poder inteiramente incorporado no Estado. Sublinhei que a democracia não é uma forma de governo, é sempre um poder em estado de excesso em relação à democracia formal, sem a necessidade de ser transformado em um futuro remoto a ser obtido após uma revolução a se distanciar.

CC: O senhor faz um esboço do homem em busca da justiça global: são jovens consumidores com ilusões anticapitalistas.

JR: Esse é o esboço traçado pelos antidemocratas, como o filósofo Alain Finkielkraut na França. O objetivo é reduzir novos movimentos sociais a jovens exaltados que sabem ler, mas são incapazes de julgar os fatos políticos. Isso não significa que eu ache todos esses movimentos positivos. Por exemplo, no movimento ecológico há uma mistura de poder a todos e, ao mesmo tempo, o poder da ciência. Vimos novas formas de afirmação igualitárias, mas ao mesmo tempo certas perguntas não encontram respostas. “O que vamos fazer depois de suas ocupações?”

CC: A associação que fazemos entre democracia e capitalismo remonta aos Pais Fundadores dos Estados Unidos?

JR: A tradição liberal é antidemocrática. Os Pais Fundadores não fundaram a democracia porque redigiram uma Constituição para limitar o poder do povo. Mas o poder iria para os esclarecidos, educados. E em suas mentes, iluminados e educados eram proprietários capazes de administrar suas propriedades. O projeto era precisamente submeter a democracia, isto é, o poder de todos, e assim criar um governo da elite. E chamamos esse tipo de governo de democracia, eis o problema.

CC: O senhor pleiteia que “não vivemos em democracias”, mas em Estados de Direito oligárquico. Eleições e representação são mitos. E se a esquerda da esquerda ganha aqui na França ou em outro lugar?

JR: A esquerda da esquerda é um conceito um tanto ambíguo. Existe uma classe de políticos que tomou o poder. De direita ou esquerda, eles têm programas que não são feitos por eles. São impostos pelas instituições financeiras supranacionais e/ou internacionais. Há grupos marginais, mas geralmente não consideram a questão do que é uma verdadeira democracia para o povo.

CC: Muitos dos críticos da democracia nos EUA eram a favor da invasão do Iraque em 2003. É um paradoxo, não?

JR: Essa confusão é resultado do fato de a democracia poder significar coisas diferentes e contraditórias. A direita americana pensou que a democracia era boa para os iraquianos: seria como aquela no Ocidente. Mas como a antidemocrática direita americana pode exportar democracia? Obviamente, eles estavam completamente errados. Não há paradoxo porque a própria concepção que os americanos tinham de democracia foi instrutiva. Eis o que emerge da famosa declaração de Donald Rumsfeld diante dos saques após a queda de Saddam: a liberdade é uma bagunça, é anarquia.

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