Veiculação dos comentários violou princípio da dignidade da pessoa humana e direitos da criança e do adolescente, além de estimular a tortura e a justiça com as próprias mãos
O Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou ação civil pública contra o SBT em virtude das declarações da âncora Rachel Sheherazade justificando e legitimando as atitudes de um grupo de “justiceiros” que agrediu, despiu e acorrentou a um poste um jovem de 15 anos, acusado de praticar pequenos furtos no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão pede, em caráter liminar, que a emissora veicule um quadro com a retratação dos comentários da jornalista, sob pena de multa de R$ 500 mil por dia de descumprimento. A veiculação deverá esclarecer aos telespectadores que tal postura de violência não encontra legitimidade no ordenamento jurídico e constitui atividade criminosa ainda mais grave do que os crimes de furto imputados ao adolescente agredido. A ação do MPF solicita ainda que o SBT seja condenado a pagar R$ 532 mil reais de indenização por dano moral coletivo, calculada com base nos valores de inserção comercial praticados pelo canal de TV.
Após a reportagem que mostrou a violência contra o jovem, exibida durante o telejornal “SBT Brasil” em 4 de fevereiro, a apresentadora afirmou: “O que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”. Para o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado, tal comentário defendeu a tortura praticada – sanção proibida pela Constituição – e violou o princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, a âncora já considerou o jovem culpado e condenado, ignorando a presunção de inocência prevista na lei.
DIREITOS DO ADOLESCENTE
O caso se torna ainda mais grave pelo fato de a vítima da barbárie ter apenas 15 anos. A Constituição prevê que é dever prioritário do Estado, da família e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente o direito a vida, dignidade, respeito e liberdade, além de protegê-los de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A obrigação de preservar esses direitos, no entanto, foi negligenciada nas declarações de Rachel Sheherazade.
Os comentários também se mostram aptos a estimular a prática de crimes, como os de tortura e de fazer justiça com as próprias mãos, o que, para o procurador, ganha contornos preocupantes, considerando o potencial da TV aberta em influenciar comportamentos sociais. “As declarações e comentários da apresentadora, por possuírem forte poder de influência e repercussão social, são inspiração para inúmeras pessoas que assistiram ao programa – dentre as quais grupos radicais de perseguição e extermínio, conhecidos como ‘justiceiros/vingadores’, que também formam sua opinião a partir do que é veiculado na mídia, o que pode aumentar de modo exponencial a violência contra jovens pela mera suspeita de cometimento de crimes de menor potencial ofensivo”.
COMUNICAÇÃO SOCIAL
Ao veicular tais declarações em canal de televisão aberta, serviço público da União exercido mediante concessão pública, o SBT abusou do direito à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento e violou também as diretrizes da Comunicação Social. De acordo com a Constituição, a produção e a programação de rádio e TV devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. Além disso, os comentários de Rachel Sheherazade feriram o Código de Ética do Jornalista Brasileiro, segundo o qual o jornalismo não pode ser usado para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime.
A atuação do MPF nesse caso não representa censura, medida totalmente incompatível com o regime democrático. A ação ressalta, no entanto, que o direito à liberdade de manifestação jornalística não é absoluto e que os veículos de comunicação não estão livres de sanções ou responsabilizações posteriores caso, ao informar e expressar livremente o pensamento, violem outros direitos e garantias estabelecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
RESPONSABILIZAÇÃO DA UNIÃO
A ação também se volta contra a União, já que a concessão do serviço de radiodifusão pelo Poder Público não vem sendo acompanhada por fiscalização, como determina a legislação. O MPF pede, em caráter liminar, que a União fiscalize adequadamente a programação e adote medidas administrativas, extrajudiciais ou judiciais para que as emissoras observem os princípios previstos na Constituição Federal, dando preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e respeitando os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
O número da ação para acompanhamento processual é 0016982-15.2014.4.03.6100. Para consultar o andamento desse processo, distribuído à 14ª Vara Cível da Capital, acesse http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/
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Assessoria de Comunicação
Procuradoria da República em São Paulo