Os cantos e rezas de um grupo de indígenas Kaiowá ainda eram entoadas em frente ao prédio da Justiça Federal de Ponta Porã-MS, durante o andamento de audiência referente ao assassinato da liderança Nísio Gomes da aldeia Guaiviry, quando no cair da tarde de ontem, dia 25 de setembro, correu a notícia de que grupos armados foram vistos rondando as imediações de uma pequena sede de fazenda, retomada por algumas famílias de Kaiowá no território de Kurussu Ambá, em Coronel Sapucaia-MS, a não mais que 160 km dali.
A notícia fez surtir entre os indígenas que acompanhavam a audiência, efeitos de aguda preocupação e dor como se os mesmos se deparassem novamente com o fantasma da morte de Nísio. Com a dor ainda latente pelo ataque desleal que tirou a vida de sua liderança em 2011 e conhecendo de maneira orgânica o poder e os danos da articulação dos fazendeiros da região, os indígenas puseram-se a orar também por Kurussu Ambá, para que não aconteçam mais mortes na terra indígena que tem o maior índice de violência direta contra o povo Guarani e Kaiowá no MS por parte de ações deliberadas pelos fazendeiros.
Na tarde de segunda feira, dia 22, cerca de 50 famílias indígenas retomaram uma pequena parte do território ancestral de Kurussu Ambá, território tradicional do povo Kaiowá que com a paralisação dos procedimentos demarcatórios por parte do Governo Federal manteve-se na mão de fazendeiros enquanto os indígenas encontram-se confinados desde 2009 a uma pequena extensão de mato que faz divisa com uma fazenda denominada de Auxiliadora. Os Kaiowá reivindicam espaço para plantar e melhorar minimamente sua condição de vida já que encontram-se em estado de extrema vulnerabilidade amplamente divulgada e de conhecimento público, onde a fome atinge constantemente proporções desumanas denunciadas sobretudo por organizações internacionais de direitos humanos.
Durante a retomada de alguns espaços de lavoura por parte dos indígenas, houveram problemas com um arrendatário local, que ao descumprir um acordo pactuado junto a Funai e os indígenas, adentrou espaço onde se encontravam as famílias Kaiowá pressionando-as. A partir deste momento os indígenas decidiram ocupar uma pequena sede de fazenda que se vizinha das áreas de plantio e estava ocupada pelo arrendatário.
Em resposta a busca dos indígenas pelos seus direitos fundamentais, fazendeiros locais e alguns grupos de pessoas externas, provavelmente “seguranças” contratados pelos fazendeiros, começaram a ser vistos pelos indígenas rondando a área e concentrando-se em grande número, trazidos por veículos que iam e vinham pelas estradas, para uma fazenda, que segundo informação dos indígenas fica a aproximadamente 1000 metros a frente da sede ocupada pelas famílias Kaiowá. Logo, o medo mais profundo dos indígenas se confirmou, quando os mesmos passaram a avistar ainda em plena luz do dia, que da fazenda, onde estão concentradas as pessoas que foram transportadas pelas caminhonetes, começaram a sair grupos visivelmente armados que passaram a realizar diversas movimentações no local.
Os Kaiowá, ainda no dia de ontem, estabeleceram contato com o Ministério Publico Federal de Ponta Porã, cujo procurador encontrava-se presente na audiência referente ao caso de Nísio Gomes. De lá mesmo a Juíza Federal que acompanhava as oitivas concedeu autorização para que os destacamentos da Polícia Federal que se encontravam fazendo a segurança da audiência pudessem se deslocar ainda naquela mesma noite até Kurussu Ambá. Desde então não foi possível estabelecer novo contato com os indígenas para ter retorno do que ocorreu entre a noite de ontem e a manhã de hoje devido a dificuldade de comunicação existente na região
Por estarem em uma área de fronteira com poucas possibilidades de comunicação, a situação de monitoramento por parte da Policia Federal ou Força Nacional se faz emergencial e imediata.
A violência organizada e anti-indígena voltou a bater na porta de Kurussu Ambá dando indícios claros de que se nenhuma providencia for tomada urgentemente pelos órgãos responsáveis ocorrerá mais uma de tantas tragédias anunciadas que tem assolado a vida dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Desde 2007, já foram mais de dez assassinatos durante processos anteriores de tentativa de retomada desta mesma terra tradicional. Nos mais relevantes, três lideranças foram executadas deliberadamente, inclusive Xurite Lopes, importante rezadora com mais de 70 anos.
Durante o ano passado, ficaram escancarados os bastidores de uma pesada e profunda articulação dos ruralistas para acabar na marra com os procedimentos demarcatórios, os direitos constitucionais dos povos originários e promover uma onde de extermínio físico a lideranças e comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul. O ápice desta organização criminosa se deu com a realização dos denominados “leilões da resistência”, onde abertamente fazendeiros realizaram leiloes de venda de gado para arrecadar fundos para articulação e armamento de milícias anti-indígenas.
Em outros casos, como o da liderança Nísio Gomes fica explícita a participação de empresas de segurança contratada pelos ruralistas na sua execução.
A história se repete sistematicamente e enquanto as demarcações seguem paralisadas. No caso de Kurussu Ambá, os indígenas estão entre duas espécies de mortes anunciadas. De um lado a violência direta dos fazendeiros, de outro, abdicar de seu direito a terra e a vida digna e retornar para a situação que vem causando a mortalidade de muitas de suas crianças e velhos.
O Cimi, contatado na noite de ontem por membros das famílias que se encontram em Kurussu Ambá reafirma sua solidariedade com os povos indígenas repudiando e denunciando as práticas de extermínio e genocídio realizadas abertamente contra o povo Guarani e Kaiowá. Os povos indígenas exigem que providências sejam tomadas imediatamente e os direitos das famílias que se encontram em Kurussu Ambá à vida digna e as mínimas condições humanas sejam garantidos. Caso contrário, o histórico recente de violência contra os povos indígenas no estado do Mato Grosso do Sul faz crer que estamos novamente frente a uma nova e drástica situação de assassinatos anunciados.