Estudo de Componente Indígena apresentado no Ibama contraria a Constituição Federal. Cabe agora à Funai se manifestar a respeito. Os Munduruku, cujas aldeias ficarão debaixo d’água, não fazem parte do processo.
por Felipe Milanez, CartaCapital
Desde a Ditadura Civil-Militar, mais especificamente, a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, um projeto tão violento e ilegal contra os índios (portanto, contra a sociedade brasileira) não acontecia no Brasil. Para construir a Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, além de alagar terras indígenas, governo ainda quer remover três aldeias do povo Munduruku, contrariando o artigo 231 da Constituição Federal.
Como disse o goleiro Aranha, no caso de racismo de que foi vítima pela torcida do Grêmio: “muita gente sofreu para que hoje isso estivesse na lei”. No caso da remoção para barragens, quem sofreu, por exemplo, foram os Waimiri Atroari. Na época, durante o regime de Exceção, a ditadura cumpriu a lei. Havia uma previsão legal que permitia a remoção compulsória de povos indígenas no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). Acontece que muita gente sofreu, e vieram os direitos constitucionais. A Constituição Federal, no parágrafo quinto do artigo 231, veta a remoção, e as únicas exceções possíveis são o caso de epidemia e catástrofe, ainda com referendo do Congresso Nacional. E os removidos devem retornar ao seu território em seguida.
O Ibama acabou de receber os Estudos do Componente Indígena referente à UHE São Luiz do Tapajós. O documento contraria diversos direitos indígenas e pode ser acessado aqui.
Além de tudo, parece ser cruel e mórbido, pois tenta fazer crer que os próprios indígenas estão de acordo com o que vai acontecer com eles. Aparentemente, o estudo foi realizado sem que a antropóloga responsável sequer pisasse em uma terra indígena para avaliar os impactos, e sem a consulta aos indígenas, como prevê a legislação internacional — temas que estão sendo, inclusive, debatidos na Assembléia da ONU em Nova York, onde Dilma Rousseff discursou ontem.
Seriam afetadas as Terras Indígenas Praia do Mangue e Praia do Índio e as Áreas km 43 (Sawré Apompu), São Luiz do Tapajós(Sawré Jiaybu), Boa Fé (Sawré Maybú, Sawré Dace Watpu e Sawré Bamaybú), além de indígenas e ribeirinhos que vivem nas vilas Pimental e São Luiz do Tapajós. Escreve a antropóloga que assina o laudo que “As manifestações diretas dos Munduruku foram coletadas junto a indivíduos e lideranças da etnia que se propuseram a conversar e participar de entrevistas informais fora de suas terras e em locais sempre determinados por eles.” Ou seja: o estudo antropológico do componente indígena é realizado “à distância”.
Acontece que os Munduruku haviam solicitado participar “como interlocutores durante o trabalho da equipe, decisão de escolha feita pelo(s) cacique(s)”, e os caciques não foram consultados. Os indígenas haviam pedido também que houvesse mais tempo e esclarecimentos, o que foi ignorado pela equipe de pesquisa. A Funai não participou nem acompanhou os trabalhos, o que também era uma exigência dos indígenas. As entrevistas que a antropóloga diz ter feito foram feitas na cidade de Itaituba, sem os devidos esclarecimentos, antes da reunião de apresentação da equipe e, obviamente, sem a decisão de escolha pelo cacique. Alguns indígenas disseram ter entendido que as antropólogas estavam trabalhando para a Funai, pela forma como elas explicaram sobre o trabalho que estavam fazendo.
Pior: os Munduruku temiam que aldeias seriam alagadas e removidas, esse era um boato que circulava na região. Mas não puderam participar das discussões sobre o projeto.
Os fatos mais agressivos contra os povos indígenas contidos no estudo são os seguintes:
O reservatório se estabelecerá com o nível médio de água na cota 50 m, o que implica que as três aldeias relacionadas à Boa Fé (Dace Watpu, Sawré Maybú e Karu Bamaybú) a montante dos eixos de barramentos estudados serão afetadas diretamente, cabendo, portanto, ações de relocação das mesmas. Essa passagem está na página 229. As aldeias ficarão literalmente debaixo d’água
Se São Luiz, for construída, os Munduruku ainda vão perder áreas de cultura (roças, açaizais, etc.), terão alterados os locais para pesca, vão perder recursos alimentares, terão alterados locais de caça, locais de coleta de produtos vegetais e das espécies de pescado. Não serão poucas mudanças nas suas vidas que eles terão que enfrentar.
Os estudos do componente indígena foram protocolados no Ibama no dia 11 de setembro, feitos pela empresa CNEC WORLEYPARSONS ENGENHARIA S/A, e coordenado pela antropóloga Marlinda Melo Patrício. Dois biólogos também integram a equipe, contra a vontade dos indígenas que apresentaram restrições ao trabalho de biólogos dentro da área.
Recentemente, a Sociedade Brasileira de Arqueologia se posicionou de forma contrária ao licenciamento do projeto e cobrou uma postura ética de pesquisadores para o empreendimento, em carta publicada aqui no blog.
A Terra Indígena Sawré Muybu que será impactada, onde estão aldeias que terão que ser removidas, ainda não foi demarcada pela Funai, que senta em cima do processo há anos, numa velocidade evidentemente oposta a da realização dos “estudos” para a construção das usinas. O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal de Itaituba contra a Funai e a União Federal pela demora na demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, de ocupação tradicional do povo indígena Munduruku, localizada nos municípios de Trairão e Itaituba/PA, no médio curso do rio Tapajós. O procedimento se arrasta há 13 anos e foi paralisado inexplicavelmente ano passado quando quase todos os trâmites administrativos já estavam concluídos.
O Ibama enviou o Estudo do Componente Indígena para a Funai, e é difícil que os técnicos responsáveis pelo licenciamento deixem passar essas ilegalidades nas análises. Politicamente, no entanto, pode ser que a Funai repita o mesmo erro histórico que cometeu em Belo Monte: desconsiderar a opinião técnica de seus funcionários para autorizar obra de interesse do governo, mesmo que seja contrária aos direitos indígenas. Estes funcionários da Funai, e que portanto trabalham para o Estado (e não para um governo), e são comprometidos com a defesa dos direitos constitucionais das sociedades indígenas, devem ter em mente que esta luta pelo Direito é uma luta em defesa de toda a sociedade.