CIMI – Enquanto o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo realizava mais uma rodada das mesas de diálogo sobre a demarcação de terras, em Brasília, durante esta quarta-feira, 17, com agricultores e indígenas do Rio Grande do Sul, no norte do estado 12 famílias Kaingang eram removidas à força das margens de uma rodovia estadual, a ERS-480, no município de Erval Grande.
Uma turba enfurecida de agricultores e comerciantes de Erval, convocados por um ofício da Comissão da Invasão Indígena do município, se posicionou diante do acampamento Kaingang, situado próximo de área reivindicada pelos indígenas como tradicional, destruiu barracos, jogou pertences sobre caminhões e na marra os empurrou para dentro de uma van, despejando-os como se fossem animais a cerca de 140 km do local, às portas da sede da Funai, em Passo Grande.
Na frente do órgão, os colonos agrediram os indígenas, que eram cerca de 45 vindos do acampamento de forma obrigada. Os Kaingang se defenderam e um princípio de conflito teve início. De acordo com o coordenador regional da Funai, Roberto Perin, os Kaingang foram levados para uma reserva em Água Santa. Para a imprensa local, Perin repudiou a ação do bando e afirmou que há medidas legais em casos como o de Erval: seja para a reintegração de áreas, ou para a realização das demarcações.
Jacir de Paula Kaingang afirma que não vão desistir das terras reivindicadas, e que não tinham o objetivo de destruir casas ou agredir qualquer morador, tal como justificava a convocatória ao ato contra os indígenas acampados às margens da rodovia. “Foi contra a nossa vontade (a remoção). Sabemos de nossos direitos. Dizem [agricultores] que são donos há cem anos, mas nós que somos donos há 500 anos. Fomos para reivindicar essa área verde, próximo da rodovia. Não invadimos propriedade dos colonos. Eles têm direito e nós também temos”, disse Jacir para a imprensa local. Os Kaingang prestaram depoimento para procuradores do Ministério Público Federal (MPF) nesta quinta-feira, 18.
Erval Grande compõe uma região que conta ainda com o município de Vicente Dutra, local em que no mês de novembro de 2013, durante Audiência Pública da Comissão de Agricultura, os deputados federais Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) convocaram os colonos para resistirem “da forma que for” contra os povos indígenas que reivindicam terras tradicionais. Assista o vídeo aqui.
Também nesta mesma região está Faxinalzinho, município onde ocorreram conflitos entre indígenas Kaingang agricultores. Os Kaingang bloquearam estradas vicinais em protesto pela demora nas demarcações de terras e dezenas agricultores trataram a manifestação e organização dos Kaingang com violência e intolerância.
Com medo de serem filmados e identificados pelo ato criminoso, os colonos agrediram um cinegrafista da RBS, emissora que cobria a remoção forçada. A ilegalidade, portanto, foi flagrante. Apenas quem pode questionar a presença dos Kaingang no local é o Estado, que só poderia fazer a reintegração de posse com decisão judicial. Ainda que a área fosse ‘privada’, só poderia ser revista pelo ‘proprietário’ na Justiça.
O fato é grave e injustificável. Ao que parece, centenas de agricultores apoiados pelos discursos de ódio dos parlamentares, pela certeza da impunidade e amparados pela política indigenista do governo federal de paralisação das demarcações, decidiram fazer a justiça dos mais fortes, “da forma que for”, numa cruzada já imposta aos indígenas durante o século XX, com remoções forçadas, higienização étnica e racismo.
Enquanto os Kaingang seguem às margens das estradas, colonos seguem à margem da lei incentivados e encorajados pela inócua figura do ministro da Justiça, que não pode ser eximido de responsabilidade. Cardozo, de forma insistente, aposta numa via que só pode dar certo caso os indígenas abram mão de seus direitos ou de pedaços de seus territórios a ponto de satisfazer as vontades dos ocupantes de plantão.
Os brados da raiva bestial de Heinze e Moreira ergueram cercas de ódio e violência ao redor dos direitos dos povos indígenas. Tais obstáculos, todavia, podem ser trespassados pela aplicação das legislações e regras envolvendo terras indígenas, terrivelmente interpretadas por um ministro especialista em administrar a própria inoperância. Com o resultado das eleições indefinido, sem contar o fato de que os três favoritos a vencer a corrida presidencial fecharam pactos com o ruralismo, o futuro segue sob névoas sombrias.
Enquanto isso, a intolerância destes colonos não permite mais que os indígenas ocupem ao menos os pequenos pedaços de área pública entre as cercas e o asfalto, já que as terras tradicionais seguem sob embargo das mesas de diálogo; e elas, na parte que as toca, não agradam tanto o movimento indígena, quanto os ruralistas, que por sua vez passam por cima do diálogo tal como se comprova com a remoção forçada dos Kaingang, entre outros episódios país afora.