Mulheres negras sempre vivas da serra do Espinhaço

mulheres sempre viva
Mulheres negras sempre vivas: Dona Miúda; Dona Tereza; Dona Preta; Dona Ilídia; Dona Macarrão e Dona Maria Serra

Projeto independente documenta as histórias de vida e paisagens do cotidiano de filhas e netas de escravizados em comunidades da serra do Espinhaço, em Minas Gerais

Por Marina Moss e Thiago Almeida*, Repórter Brasil

A escravidão foi abolida oficialmente no Brasil no dia 13 de maio de 1988, depois de três séculos e quatro milhões de seres humanos transportados em porões de navios negreiros. Porém, o processo de abolição da escravatura no Brasil atendeu apenas aos interesses de produtores rurais e de uma nascente classe industrial. Uma massa de negros e negras foi jogada nas ruas, negligenciada pela recém-proclamada República, à mercê da própria sorte. Nenhuma compensação ou política pública foi pensada a fim de inserir os negros libertos na sociedade que acabava de ser instaurada.

Nos anos iniciais do século 20 e especialmente durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945) as manifestações religiosas, a capoeira e tantos outros aspectos imateriais da cultura afro-brasileiras foram renegados, perseguidos e criminalizados pelo aparato repressivo do Estado brasileiro. Esse cenário se manteve pelos anos seguintes, salvo algumas ações progressistas como a liberdade de culto promulgada pela Constituinte de 1946, por iniciativa do então deputado federal Carlos Marighella. O golpe de 1964 abafou as crescentes mobilizações e pressões das organizações civis em torno de melhorias e conquistas sociais. Processo retomado apenas no final da década de 1980, com a Constituinte de 1988.

Passados mais de um século da abolição da escravatura, muitos aspectos permanecem pouco conhecidos pela sociedade brasileira. De que modo e onde viveram os negros recém-libertos? Como ocorreram as inserções dos filhos e netos na sociedade da época? Essas e muitas outras perguntas estão presentes no desenvolvimento do foto documentário “Mulheres sempre vivas”.

As sempre vivas do Espinhaço
O Projeto Mulheres Sempre Vivas, iniciativa da pesquisadora Marina Moss e do jornalista e fotógrafo Thiago Almeida (que pode ser acessado aqui), procura, por meio de um livro documental, (re) construir e contribuir para a salvaguarda de parte da memória coletiva do povo brasileiro. Lançando mão da metodologia de imersão, baseada na observação participante, e através da captação de histórias orais e construção de registros fotográficos, a iniciativa procura narrar a épica, ainda que negligenciada pela historiografia oficial, saga das mulheres filhas e netas de negros escravizados no contexto da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço.

A serra do Espinhaço é uma porção singular do Brasil onde homem e natureza estão em constante diálogo. Os campos rupestres, o Cerrado e a Mata Atlântica influenciaram diretamente as formas de uso e ocupação do solo frente ao modo de produção que, historicamente, também condicionou essas realidades sociais. As memórias e histórias de vida dessas mulheres dialogam com o contexto espacial no qual se desdobraram os processos de interação das pessoas com o meio natural da serra do Espinhaço, imprimindo marcas na paisagem e atribuindo valores a essas pequenas localidades. Por essa razão, ao pesquisar as memórias e histórias de vida das mulheres, torna-se fundamental compreender seu contexto espacial e os processos paisagísticos que tornam a região tão singular para Minas Gerais.

Geração-elo
O projeto, ainda em andamento, procura dar voz e trazer a público as histórias de vida, memórias e paisagens do cotidiano de mulheres que representam uma geração-elo entre o fim do período da escravidão (final do século 19 e início do século 20) e o mundo atual.Todas têm em comum o fato de terem nascido, crescido e sobrevivido na região da serra do Espinhaço, eixo colonizador das Minas Gerais e do sertão brasileiro.

Histórias como a de dona Ilídia, 99 anos, moradora do distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, ex-tropeira, parteira e trabalhadora do campo, nascida e criada na serra do Espinhaço. Ela que, ao completar 18 anos em 1933, vivia ainda os reflexos dos menos de 50 anos da abolição da escravatura.

Ou ainda, as memórias ancestrais do candombe na serra do Cipó, tradição que se mantém viva desde os tempos que era realizada nos terreiros das senzalas da antiga fazenda do Cipó Velho. Perpassando pelos remanescentes quilombolas, que guardam vivas as tradições dos catopés e dos cantos vissungos na Comunidade dos Ausentes no Distrito de Milho Verde. Até chegar a dona Miúda e Dona Maria Macarrão, matriarcas da dança do chula no Distrito de São João da Chapada e remanescentes do quilombo Quartel dos Indaiá, no município de Diamantina.

Em Lavras Novas, distrito de Ouro Preto, vivem algumas senhoras, todas com mais de 70 anos, que durante os anos iniciais de suas vidas, trabalharam nas lavouras de chá cultivado na Fazenda do Manso, área do atual Parque Estadual do Itacolomi. Uma dessas senhoras é a dona Tereza. Tereza nasceu em Lavras Novas na década de 1930, trabalhou dos 7 aos 12 anos ajudando na carvoaria do pai.

Durante os cinco anos seguintes percorreu descalça a trilha de mais de 10 km que liga Lavras Novas à antiga Fazenda do Manso, localizada próximo ao Pico do Itacolomi. A Fazenda de São José do Manso funcionava como plantação e processamento do chá da índia de marca Edelweiss, produto exportado para Estados Unidos e Europa. As mãos da dona Tereza, neta de negros que foram escravizados, carregam as marcas do tempo e o resultado do processo que contribuiu para a transformação das paisagens do entorno de Lavras Novas.

Interessante verificar que as crianças de Lavras Novas foram exploradas no trabalho infantil durante as décadas de 30, 40 e 50, quando em virtude da Segunda Guerra Mundial a fábrica veio a falir. Curiosamente, o ciclo produtivo do chá não parou em Ouro Preto, mas procurou se arranjar frente as novas divisões do trabalho em nossos dias. O mesmo chá é atualmente cultivado por crianças na Índia.

As montanhas que subimos nos verões passados
A pesquisa documental, até o momento independente, é resultado da relação afetiva e científica de mais de uma década dos pesquisadores com a região da serra do Espinhaço. Até o presente momento foram realizados dois trabalhos de campo:

– O primeiro, com duração de 21 dias, em novembro de 2013, teve como propósito fazer o reconhecimento da paisagem, apresentar a pesquisa para as comunidades locais e estimar os custos e necessidades técnicas para finalizar o projeto.

– O segundo durou 45 dias, entre os meses de março e abril de 2014, e buscou construir os primeiros registros da paisagem, entrevistar as primeiras mulheres “sempre vivas” identificadas no primeiro campo, identificar novas personagens e construir o embrião dos textos e crônicas da pesquisa.

Por onde queremos navegar?
A pesquisa documental do Projeto Mulheres Sempre Vivas é uma ação destinada a contribuir com as memórias de comunidades afrodescendentes em território brasileiro, de grande relevância histórica no processo de ocupação mineira e importância vital para a construção e o fortalecimento das identidades locais da serra do Espinhaço. O projeto busca guardar, para as gerações futuras da região, a oportunidade de conhecer parte importante de sua história.

A importância maior do projeto consiste em preservar e (re) conhecer o patrimônio cultural imaterial em vias de desaparecimento, e pede urgência, uma vez que realizamos uma corrida contra o tempo para registrar essas memórias. Atualmente, as comunidades investigadas têm sofrido intenso processo de sufocamento decorrente de transformações socioespaciais, e seus saberes e manifestações culturais correm o risco de desaparecer junto com o desaparecimento dessas mulheres, sem que tenham sido registrados e investigados de forma organizada.

Dessa forma é preciso realizar ações que contribuam para a continuidade da existência de bens culturais imateriais, como as músicas, danças e cantos de comunidades quilombolas, deixando registrado o universo de bens culturais que são referência para jovens (alvos diretos dos impactos decorrentes das mudanças sociais), que ignoram suas raízes, e para as gerações futuras.

O Projeto Mulheres Sempre Vivas carrega, portanto, uma dupla missão: dar voz às mulheres da serra do Espinhaço que estão às margens da história oficial (uma geração em vias de desaparecimento), e transmitir, às gerações futuras, as memórias daquelas que com trabalho e determinação abriram as trilhas por onde agora caminhamos.

A pesquisa, que envolve reflexões sobre a paisagem cultural, fotografia documental e as artes, adota uma metodologia cujo objetivo é tentar construir uma reflexão que clareie a relação existente entre os patrimônios imaterial, material, cultural e natural. O registro das memórias dessas mulheres pode desempenhar um papel educativo, através da conscientização e informação voltadas para o público jovem, sobre a importância do patrimônio cultural associado às histórias de vida das comunidades envolvidas e o seu reconhecimento e valorização perante a sociedade. As memórias das mulheres sempre vivas da serra do Espinhaço conectam práticas, conhecimentos, expressões e lugares culturais que em conjunto reforçam e paisagem resultante da interação entre ambiente, história, identidades e práticas cotidianas.

Os resultados e desdobramentos esperados com o Projeto Mulheres Sempre Vivas consistem em um livro, uma exposição fotográfica e oficinas, iniciativas que visam empoderar as gerações atuais e as que estão por vir com o resultado de uma pesquisa documental sobre a origem e importância da ancestralidade afro-brasileira.

Fotos: Thiago Almeida.

* Marina Moss é Turismóloga e Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do GIPE e conselheira da Ong. Montanhas do Espinhaço. Pesquisa a região do Espinhaço há mais de 10 anos e desenvolve estudos sobre paisagem e patrimônio cultural.; Thiago Almeida é fotógrafo, Jornalista e Turismólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Desenvolve estudos sobre paisagem, cultura e patrimônio material e imaterial.

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