A arqueologia sob ameaça

Foto: Carlos Alfredo Melo. Raquel Boechat no Complexo Arqueológico Serra das Paridas, Chapada Diamantina - BA. (2014).
Foto: Carlos Alfredo Melo. Raquel Boechat no Complexo Arqueológico Serra das Paridas, Chapada Diamantina – BA. (2014).

A (dita) nova instrução normativa e as portarias 230/2002 e 28/2003 do IPHAN

Raquel Boechat, Coletivo Carranca

A Arqueologia Brasileira nunca nos rendeu pirâmides. Nenhum achado arqueológico, no Brasil, impactou positivamente a Economia. Mesmo pesquisas de apelo popular e científico, como Amazônia e Serra da Capivara no Piauí, sofreram abalos nos investimentos, viveram tempos de incerteza ou limitações, e há os que ainda não foram estudados, caso dos Geoglifos do Acre, Rondônia e Amazonas.

Apesar de esta não ser questão exclusiva de qualquer ciência, nem do Brasil, são tantos os desafios históricos nacionais que os da Arqueologia no país tornam-se ainda maiores. Um dos obstáculos a vencer está nos interesses do Capital, para os quais a Arqueologia Brasileira é um estorvo. Sobre este contexto:

A Arqueologia, nas últimas décadas, tem-se afastado da compreensão positivista e processual que faz da sociedade e da própria disciplina. O objetivo de conhecer o passado “como realmente era”, […] revelou-se demasiado ambicioso e a disciplina voltou sua atenção para a ética e a política. Não é por acaso que este movimento coincidiu com a globalização, introduzida como um novo slogan para descrever o capitalismo. Desde o início, a globalização surgiu tanto como uma oportunidade como uma ameaça à natureza e à sociedade. [1]

Setembro de 2014 começou com dor de cabeça para os profissionais da Arqueologia Brasileira. A razão é a notícia de que foi divulgada, recentemente, aos servidores do IPHAN em um encontro em Brasília, uma Instrução Normativa (IN) com alterações profundas nos procedimentos e critérios à pesquisa arqueológica de consequências avassaladoras para o patrimônio. Mexeu com a categoria e publicamos imediatamente ao artigo do autor original da denúncia.

A notícia chegou pelo artigo do Procurador Marcos Paulo Miranda, estudioso, doutrinador do assunto e trincheira viva pró Arqueologia e defesa do patrimônio cultural e arqueológico, no Ministério Público Federal em Minas Gerais. Segundo seu relato, a IN impõe a revogação da Portaria IPHAN 230/2002(que trata da arqueologia preventiva nos licenciamentos ambientais) e a Portaria IPHAN 28/2003 (que exige o licenciamento arqueológico das usinas hidrelétricas implantadas sem a realização dos estudos arqueológicos prévios), entre outras medidas, como a não obrigatoriedade da socialização do conhecimento auferido por meio de publicações ou musealização, a extirpação do licenciamento arqueológico corretivo de empreendimentos, a omissão outorgada ao IPHAN se não houver provocação do órgão ambiental licenciador, a dispensa de trabalhos arqueológicos prévios em vários tipos de empreendimentos, e a exigência mínima, na maioria dos projetos, da presença de apenas um arqueólogo em campo responsável pela gestão do patrimônio eventualmente identificado durante os trabalhos.

Segundo uma cópia pirata que circula pela internet, o documento foi elaborado entre 2013 e 2014, e se coloca como “o instrumento legal mais abrangente elaborado pelo IPHAN desde 1961, quando foi assinada a Lei 3.924”. Uma observação inicial, talvez seja falha na redação, mas a Lei 3.924 não foi elaborada pelo IPHAN. A “Lei da Arqueologia” é uma conquista resultante de décadas de avanços na legislação e das lutas políticas dos defensores do patrimônio cultural e arqueológico, material e imaterial, desde as primeiras décadas do século XX – e salva pelo gongo! Já que promulgada no Legislativo vinte e nove dias antes da renúncia de Janio Quadros. Um mínimo atraso e esse texto provavelmente não estaria nem sendo escrito.

A cópia pirata tem quarenta e uma páginas. É um scan. Um arqueólogo arriscou na primeira leitura: “Se for o original, vai matar as empresas pequenas, destruir os sítios e deixar um monte de gente aborrecida com o modus operandi e o “monitoramento” com super poderes para o IPHAN decidir quando vai ter resgate arqueológico. Alguns conceitos para mim não estão claros. Esse doc vai dar o que falar.”

O que falar e o que analisar. Lendo a cópia pirata, vê-se que é preciso estudo concentrado para entender “como funciona” e avaliar em qual proporção impacta, se impacta em retrocessos, em contrapartida aos avanços conquistados com tanta luta, em cerca de cem anos. Estima-se que, para elaboração de documento detalhado como é, tenha sido feito bastante estudo sobre o assunto em cima de falhas e necessidades. É o desejado. As primeiras notícias e a avaliação do Procurador assustam, e falta, entretanto, a confirmação de que o documento pirata corresponde ao original para que se discuta sobre dados concretos.

A Sociedade de Arqueologia Brasileira publicou nota oficial dizendo desconhecer a normativa e negando a afirmação do Procurador de que teria sido consultada por e-mail, que teria sido enviado pelo Centro Nacional de Arqueologia, autoridade máxima do setor no IPHAN. Não houve, até o momento, qualquer pronunciamento da autarquia.

O que os arqueólogos ainda não sabem é quem elaborou, nominalmente a equipe, sob quais critérios, desde quando e por qual razão sem discutir o assunto em eventos da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) ou em audiências públicas do IPHAN.

O debate nas redes sociais mobilizou a categoria: “Os arqueologos sérios que são consultores ou têm empresa deveriam se unir e provocar, com o IPHAN, uma série de seminários sérios para que as coisas fossem feitas às claras, com critérios claros e sem subjetividades propositais e favorecimentos escusos”. Outro profissional questionou: “Onde estávamos todos quando a SAB e o CNA discutiam esta Instrução Normativa? No-campo-torrando-em-um-calor-de-50-graus-e-comendo-marmita”.

O que se percebe é que existem mundos diferentes no universo da Arqueologia, como há em outras profissões e ciências: a academia, a política e o campo. Como para atuar no ramo é preciso autorização do IPHAN para quase tudo – pesquisar, prospectar, exercer a atividade como profissional –, a maioria se ocupa em engordar o Currículo Lattes a não abrir celeuma. Mas ela existe. Sobre a SAB, um disse: “O debate necessita ir um pouco (muito) mais além do que as reuniões da SAB. SAB que não representa nem de perto a maioria das pessoas que trabalham com arqueologia e patrimônio cultural”. Sobre a autarquia: “O IPHAN nunca entendeu de arqueologia. Quem já trabalhou no órgão sabe disso. A vocação do IPHAN é enfeitar.”. Sobre a autonomia das instituições, outro atestou: “A presidente da SAB, como é de conhecimento, inclusive via plataforma lattes, fazia ou faz parte do CNA/IPHAN até esse ano. Neste caso fica difícil dizer que não conhecia o teor do documento, inclusive porque o mesmo já foi previamente discutido na reunião da SAB em 2013.”

Na nota oficial, a SAB estima que as manifestações se referem à matéria do jornal Estado de São Paulo (3/8) e afirma: “Muito embora estejamos todos preocupados com o conteúdo do documento que afetará os procedimentos do licenciamento ambiental no país, comunicamos que, ao contrário do signatário do referido e-mail, não tivemos acesso ao tal documento. Nesse sentido, entendemos que seria imprudente a manifestação sobre um documento cujo teor desconhecemos.”

Vamos fazer como a SAB e aguardar o original, mas gostaríamos de apontar alguns dados sobre o que se perde na hipótese das portarias 230/02 e 28/03, do IPHAN, serem revogadas, e seus mecanismos e vantagens, não substituídos.

Para os leigos entenderem, a Portaria 230/02 do IPHAN inseriu a pesquisa arqueológica como uma das etapas do EIA-RIMA (Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, obrigatório na Constituição Federal e regulamentado por lei). Assim, toda obra para obter suas licenças, além dos estudos de impacto ambiental relativos aos bens da natureza – rios, matas – automaticamente realiza o diagnóstico arqueológico. Não tendo nada no terreno, um laudo libera a obra a prosseguir com suas máquinas. Encontrando vestígios de antepassados ou artefatos que comprovem a presença da civilização humana em tempos anteriores, coletam-se os dados para futura pesquisa e libera-se a obra, ou sugere-se alterações. Tal mecanismo legal condiciona e disciplina o empreendedor e os agentes da administração pública a um correto e legal modo operandi para obtenção da licença prévia de obras, obriga a Educação Patrimonial na comunidade impactada por determinada obra (divulgando o resultado das pesquisas junto à população local) e impulsiona a Arqueologia no país a reboque do crescimento econômico.

Para se estimar o impacto da Portaria 230/02 também na economia da Arqueologia (geração de mercado de trabalho e de impostos, além dos resultados científicos e divulgação dos resultados da pesquisa à população), tomamos como parâmetro os dados de emissão de portarias para a autorização pelo IPHAN de realização das pesquisas arqueológicas no Brasil compilada pelo arqueólogo Paulo Zanettini em parceria com o IPHAN de São Paulo. Estes dados foram enviados para minha monografia de pós graduação que trata de legislação e responsabilidade patrimonial do Estado em caso de dano ao patrimônio arqueológico, mesmo em casos de omissão. [2]

Segundo o levantamento, com a Portaria 230/02 “de 2003 a 2011 foram emitidas 5.387 portarias para o território nacional, englobando as de autorização, permissão, prorrogação e renovação, além das voltadas à publicação de normas e orientações.”. [3]

“[…] há um aumento relativamente constante no decorrer dos anos no que tange à emissão de portarias de pesquisa, sobretudo a partir de 2008. De 2003 a 2009 já se podia contabilizar que 98% delas eram associadas ao licenciamento de empreendimentos (ZANETTINI, 2009). De acordo com as outras tabelas de controle de portarias emitidas, nos levantamentos enviados por Zanettini, observa-se que à exceção do ano de 2008, quando o estado de Santa Catarina foi o de maior demanda, a maior parte das emissões são para o estado de São Paulo que, até 2011, contabilizou 1001 portarias, o equivalente a 15,70% do total emitido para o território nacional no período estudado.” [4]

A portaria 28/2003, que exige o licenciamento arqueológico das usinas hidrelétricas implantadas sem a realização dos estudos arqueológicos prévios, vem na esteira da intenção do Art. 4 da Lei 3.924/1961. O referido artigo (a lei é de 1961!) não esqueceu nem mesmo dos que já estivessem explorando economicamente jazidas, à época, antes de sua vigência, obrigando a comunicação ao DPHAN (atual IPHAN) ao exame, registro, fiscalização e salvaguarda dos bens arqueológicos de interesse da ciência. [5]

Ser preventivo com o passado da forma mais ampla possível fazia, e ainda faz, todo sentido, afinal “[…] quanto mais partes da totalidade do patrimônio arqueológico já protegido forem identificadas, maior a tutela e maiores os ganhos sobre os resultados científicos derivados dos achados, e este cenário se acentuou com o incremento que as grandes obras públicas, como as do PAC […].” [6]. No que tange às hidrelétricas que não realizaram a devida pesquisa, além de tal irregularidade afrontar a Constituição em todos os seus capítulos referentes a Cultura e Meio Ambiente, conflita diretamente com a Lei 3.924/61, com o Decreto-Lei 25/1937, com a legislação ambiental, alcançando ainda os códigos Civil e Penal, conforme o caso concreto.

Para entendermos a dimensão dos prejuízos num eventual dano ao patrimônio, lembramos de um exemplo onde houve pesquisa arqueológica.

O caderno Ciência do jornal Folha de São Paulo (Folha) de julho de 2011 publicou: “arqueologia vive explosão no Brasil”, “número de escavações aumentou 19.300% em 20 anos” saltando de “5 para 969 entre 1991 e 2010”, e em consequência do PAC o número de licenças cresceu em 130% com a perspectiva de fechar aquele ano com 1300 autorizações, o equivalente a “uma média de uma nova pesquisa a cada seis horas”. Mas dizia, ainda, a reportagem:

Na semana passada, […] quando a presidente Dilma apertou o botão que abria as comportas da usina hidrelétrica de Santo Antônio, condenou ao afogamento centenas de petroglifos (murais gravados em pedra pelos índios na pré-história). Em Santo Antônio, uma empresa contratada por R$ 10 milhões levou 60 arqueólogos ao canteiro de obras e registrou 52 sítios. “O que conseguimos fazer lá não seria possível na academia”, disse à Folha Renato Kipnis, pesquisador da USP e arqueólogo da empresa Scientia, que coordenou o resgate em Rondônia. Nem todos os sítios têm a mesma sorte. O Iphan frequentemente recebe denúncias de empreendedores que, espremidos pelo calendário das obras, atropelam o trabalho dos arqueólogos. [7]

À época da minha pesquisa, fui ao sítio eletrônico da Usina de Santo Antônio (acessado em fevereiro/2013),  mencionada na reportagem. Em suas páginas: “Com investimentos da ordem de R$ 15,1 bilhões” o empreendimento é “um marco na história de produção de energia por meios hídricos no Brasil” e “tem baixo impacto ambiental, considerando a relação entre capacidade instalada e dimensões do reservatório.” Noutra página, sem imagens, um texto sobre os vestígios de povoações coloniais implantadas a partir do século XVIII, assentamentos de seringueiros datados do século XIX, início do século XX e do período da Segunda Guerra Mundial, além de vestígios pré-históricos e históricos, de ocupação pré-ceramista no Alto Madeira, uma ponta de projétil lascada indicando a presença de grupos de caçadores-coletores há mais de 10 mil anos e a presença de inscrições rupestres que “sempre despertaram” a curiosidade de seus visitantes. O case deste empreendimento dimensiona, mesmo sem ter sido a pretensão de meu trabalho acadêmico colher todos os dados do trabalho realizado em Santo Antônio para um julgamento preciso, os tantos desafios que um único projeto ou evento traz para a Arqueologia Brasileira e para o Estado – no qual se incluem o Ministério da Cultura e o IPHAN. “Mesmo que determinada obra como esta respeite a lei, computam-se perdas e ganhos ao patrimônio. […].” [8]

Da coleta de dados (a base de dados da arqueologia é finita!) e da perspectiva de estudos no futuro não há como, do ponto de vista científico, estimar o que se perde. Na soma dos prejuízos, cresce a violação de direitos difusos.

Que o desaparelhamento (ou o aparelhamento político) de autarquias como IPHAN, IBAMA, FUNAI e Fundação Palmares, conforme citados na matéria da Folha (3/8), é preocupação que vem de longe para todas as categorias profissionais envolvidas com as questões do meio ambiente e do patrimônio arqueológico e cultural, material e imaterial, é sabido. Seguiremos no aguardo de um documento original para melhor avaliação, ou o pronunciamento do IPHAN, estudando o pirata.

Notas:

[1] FUNARI, Pedro Paulo A. et al. Ética, capitalismo e arqueologia pública no Brasil, História vol. Franca 2008, UNESP On-line version ISSN 1980-4369, p.1. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742008000200002&script=sci_arttext>. Acessado em 28-03-2012.

[2] BOECHAT, R. M., A Arqueologia Brasileira na Tragédia dos Comuns e a Responsabilidade Patrimonial do Estado. Monografia de conclusão do curso de pós-graduãaço em Arqueologia Brasilera, Faculdade Redentor, 2013.

[3] (Idem, p. 27)

[4] (Idem, p. 28)

[5] (Idem, p. 19)

[6] (Idem, p. 28)

[7] (Ibidem)

[8] (Ibidem)

Carta de Esclarecimento do IPHAN sobre a Arqueologia Preventiva relativa ao Licenciamento  postada na página do Facebook da SAB por volta das 21h30 de 4/9 e, na mesma noite, no site do IPHAN. Até o momento não há qualquer referência na pagina do IPHAN no Facebook.

Enviado por Alenice Baeta para a lista do Cedefes.

Nota de Combate Racismo Ambiental:

A versão ‘pirata’ da Instrução Normativa e seu Manual podem ser baixados em Documento do IPHAN.zip.

Comments (2)

  1. “No-campo-torrando-em-um-calor-de-50-graus-e-comendo-marmita.” Acho muito concreta essa definição daqueles que se percebem excluídos do debate entre IPHAN e SAB sobre a versão atual da IN nº1/2014; Ela expressa um grau de consciência que permite realmente participar de lutas como a Contra o Racismo Ambiental. Vou adotar essa definição nas minhas análises sobre o processo brutal de alienação de trabalho ao qual as pessoas que trabalham com arqueologia têm sido submetidas pelas academias e pelas empresas de arqueologia e cuja SAB não representa; Pois acredito que a luta contra o Racismo Ambiental somente encontra condições na luta pela destruição das relações de domínio e exploração, sejam elas capitalistas ou desigual-combinadas. Por outro lado, na minha opinião, o caso da presidente da SAB que até recentemente trabalhou no IPHAN e afirma desconhecer o teor documento é a expressão de uma elite que transita entre um profundo desconhecimento da formação social brasileira e ações demagógicas. São acadêmicos que se “enfeitam” e cuja única função na sociedade é proteger o status quo vigente para manter os seus privilégios. Não se deveria esperar algo diferente deles/as in praxis politica.

  2. É com profunda tristeza que Santa Catarina assiste a destruição de seus Sambaquis. Sem estudos conclusivos e mostrando ser o epicentro de uma civilização (Jaguaruna/Tubarão/Laguna) não há no Estado, e nem por parte do governo federal, um projeto para preservar o patrimônio histórico e cultural como também explora-lo sob a ótica do turismo e de estudos científicos com participação das escolas e universidades.

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