Tenho o orgulho de informar que, se considerarmos a pesquisa encomendada pelo jornal Estado de S.Paulo e pela TV Globo ao Ibope como um gabarito, fui novamente “reprovado” como brasileiro.
[Sobe som. Barulho de sidra estourando, de palmas e de gente fazendo “uhú”.]
Novamente porque não foi a primeira pesquisa, nem será a última em que isso deve acontecer.
Alguns dos meus leitores engraçados vão dizer “Ótimo, mude-se para Cuba ou para a Coreia do Norte”.
E respondo de pronto: Não dá, porque lá não tem Apple Store (Alerta! Alto nível de ironia detectado! Só chegue perto com um kit de interpretação de texto em mãos).
Bora lá checar os resultados:
79% dos eleitores são contrários à legalização do aborto e 16% são a favor.
Particularmente, acho esses números um pouco fora da curva. Até parece amostra tomada na porta de igrejas e templos porque pesquisas anteriores (sob outras metodologias) apontavam números menores. Será que o país ficou pior em tão pouco tempo? Não duvido, claro. Enfim, dizem que jornalista que questiona metodologia de pesquisa não vai para o céu. Mas o inferno é um lugar quentinho…
Além do mais, deve-se verificar qual a pergunta feita.
– Você é a favor de legalizar o aborto para que pobres bebês sejam assassinados por inconsequentes mulheres que, na hora de transar, não quiseram usar camisinha?
É diferente de:
– Você é favor da legalização do aborto?
Que é diferente de:
– Você defende que o direito ao aborto seja ampliado para além dos casos de estupro e risco de vida para a mãe?
Mas a melhor pergunta seria:
– Caso sua filha/irmã/BFF estivesse grávida e não quisesse ou pudesse levar adiante a gravidez, você acha que ela deveria ser presa por interrompê-la?
Porque empatia é tudo. E a ausência de direitos nos olhos dos outros é refresco.
79% dos eleitores são contrários à descriminalização da maconha e 17% são a favor.
Não vou repetir a consideração da porta da igreja. Se quiser insistir, fale com o Fernando Henrique Cardoso, aquele comunistazinho defensor de gente chapada.
Se uma pessoa que usasse maconha fosse um perigo para si mesma e para a sociedade, mais do que um usuário de cerveja ou de uísque, não haveria médico atendendo em consultório ou fazendo cirurgia, cientista descobrindo curas de doenças, engenheiros planejando pontes e avenidas. Ou jornalista produzindo jornais, revistas, programas de TV, programas de rádio ou blogs vagabundos na internet.
Mudanças de comportamento causados por dependência química podem atingir todos os tipos de substâncias, das consideradas legais às arbitrariamente consideradas ilegais. Mas nem por isso devemos proibir álcool, tabaco, gordura, açúcar refinado e, é claro, St. Remy.
“Ah, mas tabaco é diferente da maconha.” O princípio ativo, sim. Agora, o princípio social é o mesmo: Drogas são toleradas. Desde que te ajudem a ser aquilo que a sociedade espera de você: uma engrenagem produtiva. Ou, como disse o antropólogo Maurício Fiore, autor de diversos trabalhos sobre uso de substâncias psicoativas e um dos maiores especialistas brasileiros no tema: “droga é aquilo que o outro usa”.
O casamento gay é rejeitado por 53% dos eleitores e aprovado por 40%.
Para o desgosto da turma da intolerância com o amor alheio, a Justiça brasileira já autoriza. Sem mais.
O apoio à pena de morte perde de 49% a 46%.
Lembrando que se você é negro, pobre e mora na periferia, independentemente de ser culpado ou não, a aplicação da pena capital já é praticada.
Oito entre cada dez eleitores brasileiros apoiam a redução da maioridade penal.
Em abril de 2013, uma pesquisa do Datafolha mostrou que 93% dos moradores da capital paulista concordavam com a diminuição da idade legal a partir da qual uma pessoa possa responder por seus crimes para 16 anos. Portanto, esses 80% de agora são suaves. Estou até me sentindo em uma sociedade civilizada.
A população, feito uma horda desgovernada, pede um misto de Justiça e de vingança com as pavorosas histórias de violência. Olho por olho, dente por dente, para a felicidade de Hamurabi. Afinal de contas, aquele bando de assassinos da Fundação Casa deveria é ser transferido para a prisão e apodrecer por lá, não é mesmo? Não importa que apenas 0,9% dos jovens internados na antiga Febem estão envolvidos com latrocínios. Se a gente diz que a culpa é deles, é porque alguma coisa fizeram de errado.
Reduzir a maioridade penal para 16 anos fará com que pessoas aprendam mais cedo a se profissionalizar no crime. E se jovens de 14 começarem a roubar e matar, podemos mudar a lei no futuro também. E daí se ousarem começar antes ainda, 12. E por que não dez, se fazem parte de quadrilhas? Aos oito já sabem empunhar uma arma. E, com seis, já se vestem sozinhos.
Completar 18 anos não é uma coisa mágica, não significa que as pessoas já estão formadas e prontas para tudo ao apagarem as 18 velinhas. Mas é uma convenção baseada em alguns fundamentos biológicos e sociais. E, o importante, é que as pessoas se preparam para essa convenção e a sociedade se organiza para essa convenção.
Ninguém está defendendo o crime, muito menos bandidos. Queremos todos uma vida segura. Até porque, adolescentes que cometeram infrações são internados por até três anos e eles efetivamente são. O que está em jogo aqui é que tipo de sociedade estamos nos tornando ao defendermos a redução da maioridade penal.
Decretamos a falência do Estado e a inviabilidade do futuro e assumimos o “cada um por si e o sobrenatural por todos”? Do que estamos abrindo mão ao pregar que as falhas na formação da juventude sejam corrigidas de uma forma que, como já ficou provado, não funciona, é apenas vingança?
Enfim, como aqui já disse, uma democracia verdadeira passa pelo respeito à vontade da maioria, desde que garantindo a dignidade das minorias.
Até porque, como sabemos, a maioria pode ser avassaladoramente violenta.
Se não forem garantidos os direitos fundamentais das minorias (e quando digo “minoria”, não estou falando de uma questão numérica mas, sim, do nível de direitos efetivados, o que faz das mulheres uma minoria no país), estaremos apenas criando mais uma ditadura.
Nessas horas, eu me pergunto se estamos prontos para baterias de plebiscitos. Porque ao jogar para a massa, a dignidade de um grupo pode ir para o chinelo.
Não são minorias as responsáveis por fazerem as perguntas levadas à consulta, mas, pelo contrário, quem está no poder. O direito ao aborto e à eutanásia, a manutenção da maioridade penal em 18 anos e a descriminalização da maconha, se levadas a plebiscito, hoje, perderiam.
Mas, olhe que interessante: a taxação de grandes fortunas e de grandes heranças e a auditoria na dívida brasileira certamente ganhariam.
Agora me digam: qual estaria mais perto de ir a uma consulta? E por quê?
Alvíssaras que decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da Constituição Federal visando à garantia desses direitos não têm sido tomadas com base em pesquisas de opinião ou para onde sopra a opinião pública em determinado momento depois de um crime bárbaro.