Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
Por Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e Presidente do Cimi
Considero um privilégio ter sido convidado para, em nome dos agraciados com a comenda Dom Luciano Mendes de Almeida, proferir um discurso de agradecimento à Faculdade Arquidiocesana de Mariana. Faço-o com alegria em homenagem ao venerável Servo de Deus que fora arcebispo de Mariana, estimado e amado no Brasil e além das fronteiras da nossa Pátria.
Conheci Dom Luciano muito bem e os encontros que tive com ele marcaram a minha vida. De fato, ele irradiava uma profunda paz que contagiava a todos. Seus conselhos e sugestões partiram de um coração repleto de amor e compreensão. Nunca duvidei de que estava diante de um santo. A canonização é sempre um acontecimento “post mortem”. Geralmente passam-se muitos anos até terminar o processo eclesiástico para uma mulher ou um homem chegar à honra dos altares. No entanto há pessoas que o povo, mormente o povo simples e humilde, já aclama em vida como santas, pois intui que aí há alguém que se consagrou a Deus sem nenhuma restrição ou limite e dedica sua vida aos irmãos e irmãs com um amor fraterno e generoso.
Para descrever a personalidade de Dom Luciano, penso que a melhor opção é meditar a primeira das Bem-aventuranças do Sermão da Montanha. Este sermão de Jesus relatado por São Mateus começa com uma solenidade excepcional. Não há na Bíblia outra introdução tão solene a uma prédica de Jesus ou de um dos profetas. Cada palavra tem seu peso. No original grego são sete verbos numa única frase: “E Jesus – vendo as multidões – subiu à montanha e – assentando-se – aproximaram-se dele os seus discípulos e – abrindo a sua boca – os ensinava – dizendo“ (Mt 5,1-2):
Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
O bom Deus dotou Dom Luciano com uma rara inteligência, um raciocínio perspicaz, uma memória invejável e uma sabedoria profunda. Inteligência, raciocínio e memória são sempre dons congênitos. A sabedoria de Dom Luciano, porém, foi fruto de sua intensa e ardente experiência de Deus. Realizou em toda a sua vida o que Paulo Apóstolo escreveu aos Filipenses: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus: “esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo” (Fil 2,7). Dom Luciano não nasceu pobre, fez opção pela pobreza. Viveu uma vida “franciscana” na simplicidade e modéstia e na radical obediência à vontade de Deus. Vejo hoje os ideais de Dom Luciano concretizados no seu irmão de ordem, o nosso Papa Francisco. Pobre em espírito é quem sabe que recebeu tudo de Deus ou para citar mais uma vez Paulo Apóstolo que declara: “Pela graça de Deus sou o que sou” (1 Cor 15,10). Quem se dá conta de que “tudo é graça” não se vangloria de seus talentos capacidades e competências e muito menos procura Ibope. Esta bem-aventurança, de certo modo, é a síntese de todas as outras. Em uma mensagem aos jovens[1] o papa Francisco se refere ao santo de quem adotou o nome quando foi eleito papa. Podemos aplicar estas palavras perfeitamente ao nosso Dom Luciano: “Francisco viveu a imitação de Cristo pobre e o amor pelos pobres de modo indivisível, como as duas faces duma mesma moeda“.
Qual foi realmente a identidade de Dom Luciano? Foi pobre diante de Deus a quem amou até os recônditos de sua alma e, ao mesmo tempo, dedicado aos pobres com todas as fibras de seu coração. Sabemos como vivia cercado de mendigos já quando era bispo auxiliar de São Paulo. Existem verdadeiros fioretti sobre o amor que dedicou aos mendigos e moradores de rua. Lembro-me que uma vez o procurei na sede da CNBB. Andei pelo segundo andar onde fica a sala da presidência e perguntei a um assessor onde se encontrava o presidente. Respondeu-me: “Até poucos minutos atrás estava aqui. Não sei para onde foi. Deve estar na portaria atendendo alguns pobres que sempre vêm atrás dele“.
Sabemos que existem pobres a quem falta o indispensável para viver dignamente. São pessoas que vivem, para usar uma expressão popular, “sem eira nem beira“ ou “não têm onde cair mortos“. Mas existe outro tipo de pobres: são pessoas excluídas da sociedade por causa de sua diversidade cultural, de sua língua, sua religião, de seu modo de viver. É-lhes negada a “identidade“. Um exemplo para esta categoria de seres humanos são os povos indígenas. Esses descendentes dos primeiros habitantes da Terra de Santa Cruz sempre tiveram um lugar privilegiado no coração de Dom Luciano. Sou testemunha disso.
Há muitas histórias para contar, algumas até pitorescas. Em 1988 foram expulsos os missionários da Missão Catrimani. Dom Luciano, quando soube desta injustiça e injúria causadas a quem dedica sua vida aos índios, alterou imediatamente sua agenda e viajou a Roraima para prestar sua solidariedade aos indígenas e aos missionários. Foi extraordinário o amor que dedicou aos Ianomâmi. Ouso até afirmar que a demarcação da área indígena Ianomâmi em 1992 foi de certa maneira fruto do empenho de Dom Luciano. Várias vezes ele foi a Roraima para todo mundo saber de que lado o presidente da CNBB batalhava. Nas minhas visitas a ele em Brasília sempre achou tempo, em hora muitas vezes já adiantada para receber-me junto com o secretário do Cimi, o já falecido Antônio Brand. Às vezes cochilou de tão cansado que estava, mas mesmo assim assimilava o que nós falávamos a ele. Uma vez fomos recebidos pelo General-de-brigada Rubens Bayma Denys, ministro-chefe do Gabinete Militar: Dom Luciano, Dom Aldo, bispo de Roraima, e eu como presidente do Cimi. Reivindicamos, denunciamos, propomos. Insistimos na defesa dos direitos indígenas às suas terras ancestrais. Dom Luciano estava sentado ao meu lado. De repente percebi que o sono o dominou durante a fala monótona do General. Preocupado que o General podia não gostar, desferi uma leve cotovelada a Dom Luciano. Para minha maior surpresa, abriu os olhos e com a mente mais lúcida reagiu ao que o General acabou de dizer.
Em 1987 o Cimi empenhou-se junto com os povos indígenas pela inscrição de seus direitos na nova Constituição Federal. Grandes interesses nas áreas tradicionalmente ocupadas pelos índios e ambições inconfessáveis da parte de segmentos anti-indígenas fizeram um dos maiores matutinos do país mover uma sórdida campanha contra o Cimi. O jornal lamentavelmente se prestou a publicar documentos falsificados ou inexistentes[2]. Os inimigos da causa indígena, especialmente os interessados na exploração mineral em áreas indígenas, tentaram assim enfraquecer a presença do Cimi nas articulações da Assembleia Nacional Constituinte e desmoralizar de uma vez este organismo missionário vinculado à CNBB. Pretendiam com isso confundir os constituintes e facilitar a legalização do saque mineral em áreas indígenas.
Foram dias de aflição e intenso sofrimento. Fui pedir ajuda e conselho ao Dom Luciano, pois senti-me profundamente atingido pelo ódio dos urdidores desta campanha. Lembro-me perfeitamente da resposta, cheia de bondade, que Dom Luciano me deu: “Erwin, há oito bem-aventuranças. Sete você pode viver sozinho. Para a oitava bem-aventurança precisa dos outros, precisa de quem o persegue. Mas mesmo assim, sofrer ‘perseguição por causa da justiça’ (Mt 5,10) não deixa de ser uma bem-aventurança”. Quando em 16 de outubro daquele ano fui vítima de um acidente automobilístico premeditado para tirar-me a vida[3] e passei em seguida seis semanas no Hospital Guadalupe em Belém, me recordei destas palavras do bom Dom Luciano.
No dia 14 de agosto 1987 Dom Luciano exigiu do jornal que veiculou as matérias ultrajantes o direito de resposta, responsabilizando-o por difamação e injúria por apresentar acusações baseadas em documentos falsos ou inexistentes. No dia 20 de agosto, em debate promovido pela Fundação Pedroso Horta, Dom Luciano Mendes de Almeida desmontou ponto a ponto a grande trama. Esclareceu que o matutino mentiu, distorceu fatos e funcionou como instrumento de empresas mineradoras interessadas no subsolo das terras indígenas. Quem assistiu a esse discurso no Congresso comentava depois que nunca se viu Dom Luciano tão indignado e irritado como naquela hora. Sua já proverbial calma cedeu de repente lugar a uma incisiva e intransigente exigência de reparação das injustiças cometidas contra o Cimi.
Quero encerrar esta homenagem com outra experiência que jamais esquecerei. Na noite do dia 22 de fevereiro de 1990, a diretoria do Cimi estava reunida com Dom Luciano. Foi seu último compromisso antes de partir de Brasília. No dia seguinte aconteceu aquele terrível acidente que quase ceifou sua vida. Ficou por semanas entre a vida e a morte. Em 15 de março visitei-o no hospital e ao apertar a sua mão ele me confidenciou: “Vivo uma experiência profunda de sofrimento, mas ofereço tudo pela Igreja no Brasil e pelos povos indígenas que amo com carinho!” Naquela hora me veio à mente a figura do “Servo Sofredor“ do Profeta Isaías: “homem do sofrimento, experimentado na dor“ (Is 53,3).
Dom Luciano terminou sua passagem por este mundo no dia 27 de agosto de 2006. “Morreu com fama de santo, como comprovam as centenas de visitas a seu túmulo, onde as pessoas depositam flores, fotografias e bilhetes, com agradecimentos e pedidos de intercessão“ informou o nosso arcebispo Dom Geraldo Lyrio Rocha quando no passado dia 15 de maio recebeu da Congregação para as Causas dos Santos autorização para iniciar o processo de beatificação do Servo de Deus Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida SJ, ex-arcebispo de Mariana nas Minas Gerais.
Acredito que sua futura beatificação e canonização fará brilhar uma luz de esperança para os povos autóctones do Brasil. Se em vida Dom Luciano ofereceu seus sofrimentos a Deus em favor dos índígenas, na glória dos céus será definitivamente seu padroeiro e intercessor.
Mariana, Minas Gerais, 27 de agosto de 2014
Oitavo aniversário de morte do Servo de Deus
Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida SJ
[1] Domingo de Ramos, 13 de Abril de 2014, em preparação à XXIX Jornada Mundial da Juventude.
[2] O jornal “O Estado de São Paulo“ publicou em cinco dias seguidos (9, 11, 12, 13 e 14 de agosto de 1987) com chamada na primeira página, matérias difamantes contra o Cimi.
[3] Padre Salvatore Deiana, missionário xaveriano, oriundo da Sardenha, Itália, 31 anos de idade. reitor de nosso Seminário Menor em Altamira viajava ao meu lado e teve morte instantânea.
Homenagem merecedissima ao bispo-pajé e poeta revolucionário do Araguaia. Paz e bem, Graçca Grauna