A discriminação de religiões de origem africana nasce da tentativa de inferiorizar negros, índios e mestiços. A explicação é do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, professor da Universidade de São Paulo (USP), que relaciona o preconceito ao fato de essas crenças terem como precursores populações marginalizadas. Ele detalha a trajetória evolução histórica da intolerância religiosa no Brasil. No período da escravidão, negros africanos foram obrigados a se converter ao catolicismo. Mais tarde, candomblé e umbanda viraram caso de polícia e chegaram a ser associados a doenças mentais. “É como se fosse uma artilharia pesada contra alguém que tem poucos recursos”, afirma o autor de “Candomblé e Umbanda — Caminhos da devoção brasileira”. Eis a entrevista
Dandara Tinoco – O Globo
Os ataques às religiões de matriz africana são históricos, certo?
Esses ataques ocorrem por essas serem religiões vindas de segmentos tradicionalmente marginalizados: de populações negras, indígenas e depois mestiças. É como se as religiões fossem exemplos de como essas populações são inferiores, na ótica de uma sociedade elitista, branca. Sendo inferiores, tudo que elas produzem em termos de cultura não era considerado cultura no mesmo sentido que a cultura europeia, no passado.
Mesmo as primeiras pesquisas acadêmicas sobre o tema classificaram religiões monoteístas como superiores e politeístas como inferiores. Hoje, há uma percepção de que superamos essa visão. Mas, vejo que ela não foi vencida quando um juiz, ao tratar de ataques virtuais às crenças afro, afirma que umbanda e candomblé não são religiões. É um caso típico de um pensamento evolucionista, que também existe no senso comum. Cada um tem sua religião e não devemos contestar isso. Mas, não podemos considerar que uma pessoa com uma religião destrate pessoas de outras religiões. E que o Estado não constitua mecanismos que impeçam isso. Muitas vezes, o Estado é omisso em relação a essa questão.
Como esse foi a evolução histórica desse preconceito?
No período da escravidão, Estado e Igreja eram a mesma coisa. As religiões afro eram consideradas heresia e, depois, no século XX, viraram caso de polícia. Sacerdotes foram acusados de enganar a população através de oráculos. E essas crenças foram associadas também a doenças mentais, a sintomas de esquizofrenia, de alienação. Mas o samba também era proibido, e a capoeira, considerada vadiagem, o que mostra como esses símbolos eram discriminados. No passado, embora muitas vezes a população tivesse preconceito, ela se valia dessa religiosidade muitas vezes. Mesmo sem aderir ao candomblé ou à umbanda, algumas pessoas frequentavam terreiros e centros como cliente ocasional, para consultas ou despachos. Quando as religiões neopentecostais começam a existir no Brasil, se inicia a percepção de que há adeptos a serem convertidos. E não só em termos numéricos, mas até mais num plano simbólico, já que orixás e caboclos são símbolos poderosos.
E a figura do Exu, usada com frequência nos ataques à umbanda e ao candomblé?
O Exu é um dos símbolos que sofre uma releitura. Na religião africana, o Exu é associado aos caminhos e à fertilidade. É representado por um montículo de terra com um pênis ereto, mas não tem nada de erótico, no sentido ocidental da palavra. Quando a colonização europeia chegou à África, essa imagem foi associada ao demônio cristão, que também estava ligado à sexualidade desenfreada. Foi encarado como a prova de que o demônio existia fora da Europa. Na tradição ocidental, cristã, existem dois princípios: o bem e o mal. E o Exu foi associado ao mal. Mas, na umbanda, o Exu também atende pedidos de bem. Então, ele não pode ser o demônio cristão.
Já houve casos de “releituras” de representações culturais de origem africana, como os “bolinhos de Jesus” substituindo o acarajé e ainda a “capoeira de Cristo” cujas letras não citam orixás. Qual o peso disso?
Isso é muito grave. Essas manifestações fazem parte do cotidiano da população. Quando as igrejas neopentecostais se apropriam disso, e afastam essas representações de elementos africanos, é como se fizessem uma assepsia étnica racial. O acarajé, por exemplo, é um alimento religioso. Com ele, baianas saúdam Iansã. Dizer que essa comida pertence a Jesus é, de certa maneira, tentar descapitalizá-la dos valores de origem.
Há outros preconceitos associados à discriminação dessas religiões, como homofobia e racismo?
Sim. Historicamente, as religiões afro foram as mais abertas à diversidade de gênero e de sexualidade. Há mulheres no topo da carreira, diferentemente de outras religiões. E há outra noção de pecado. O sistema religioso do candomblé e da umbanda não discriminam essas pessoas. Então, quando essas religiões começam a ser atacadas, um dos recursos usados é associar as religiões à homossexualidade. Em relação à questão racial, essas religiões têm origem africana então estão associadas aos negros, que historicamente também sofrem preconceito.
Como avalia a reação dos adeptos das religiões de matriz africana a esses ataques?
Duas décadas atrás, não existia reação ou ela era muito tímida. E o segmento afro-brasileiro tinha muitas divisões internas. Mas, conforme os ataques foram crescendo e ficando perigosos, houve uma tentativa desses grupos se organizarem. Criaram movimentos com adeptos de diferentes religiões e que começaram a dar assessoria jurídica às vítimas. Hoje todos os estados têm movimentos de combate a intolerância. E há uma reação muito mais forte de tentar frear esses ataques. Mas esses ataques são feitos de forma muito densa e sistemática. É como se fosse uma artilharia pesada contra alguém que tem poucos recursos.