Wadih Damous* – Brasil 247
É comum que a ditadura militar seja responsabilizada pelo surgimento da prática de torturas a presos em nosso país. Como as novas gerações não viveram o período anterior a 1964, muitas vezes imaginam que a tortura tenha começado aí. Mas a tortura não começou com a ditadura. Vem de muito antes.
Não seria exagero afirmar-se que ela está na origem da própria constituição do Brasil como país, que foi associada à escravidão.
Antes do regime ditatorial, o espancamento de presos comuns – em geral pobres e negros – era rotina em delegacias policiais. Constituía-se, mesmo, na principal forma de “investigação” e apuração de crimes por parte dos agentes policiais.
É verdade que a tortura dos presos comuns se intensificou no regime militar. A censura à imprensa (mesmo que não tivesse vigorado durante todo o período ditatorial), a desvalorização dos direitos humanos, o fortalecimento do autoritarismo na sociedade e o aumento da impunidade dos policiais contribuíram para a criação de um terreno propício para tal. Mas não começou aí.
Aliás, embora haja quem ponha na conta da CIA e de agentes norte-americanos, como Dan Mitrione, os ensinamentos de tortura aos militares brasileiros, a verdade é outra. Foram policiais civis, escolados na prática de anos e anos de torturas em presos comuns, os professores dos oficiais e suboficiais brasileiros que torturaram presos políticos nos porões do regime.
Outro fator contribuiu para a maior identificação da tortura com a ditadura: ela começou a ser praticada também contra os presos políticos, de forma generalizada e numa dimensão nunca antes vista no país. A violência superou até mesmo a barbárie praticada contra os opositores do Estado Novo. E aí, já não só eram ladrões, pobres e pretos as vítimas. Mas estudantes, professores, intelectuais, operários chefes de família. Gente que “não merecia” ser tratada daquela forma.
Isso fez com que se criasse, numa parcela mais ampla da sociedade, o repúdio à tortura. Além do que, os próprios presos políticos torturados tinham uma capacidade muito maior de ecoar a sua voz e denunciar a barbárie ao conjunto da sociedade.
Mas, embora se tenha avançado no combate à tortura, infelizmente a prática ainda se faz presente em nosso país.
No início desta semana, a Human Rights Watch, organização similar à Anistia Internacional, encaminhou uma carta ao Congresso Nacional fazendo uma alerta. Nela, mostra fatos concretos e afirma que a tortura continua sendo um problema grave no Brasil.
São listados 64 casos de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante contra presos ocorridos desde 2010. E, afirma a entidade, embora essas violações em geral ocorram durante as primeiras 24 horas da prisão, muitos presos passam três meses ou mais sem serem conduzidos à presença de um juiz, para quem poderiam denunciar os abusos sofridos.
Por isso, solicita um esforço dos congressistas para a aprovação do projeto de lei nº 554/2011, atualmente em análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Ele determina que os presos em flagrante sejam conduzidos à presença de um juiz no prazo máximo de 24 horas para uma “audiência de custódia.” Nela, as vítimas de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante poderão denunciar abusos imediatamente, enquanto provas ainda estão preservadas. A medida ajudaria, também a evitar confissões obtidas por meio de tortura.
A entidade reconhece os esforços do governo brasileiro para pôr fim à tortura de presos e lembra, de forma elogiosa, que, em agosto de 2013, a presidente Dilma Rousseff sancionou lei que criou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, composto por 11 peritos com poderes para realizar visitas a locais de privação de liberdade civis e militares em qualquer momento.
A luta contra a tortura é uma bandeira da maior importância. Não é exagero afirmar-se que o grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela forma como ela trata crianças, presos e internos em hospitais psiquiátricos – justamente os segmentos mais vulneráveis.
Assim, somamos nossa voz à conclamação do Human Rights Watch no combate à tortura, aos esforços do governo federal para extirpar radicalmente essa prática e à defesa de que o projeto de lei 554/2011 seja aprovado o mais rapidamente possível.
Temos ainda muito o que avançar nesse terreno.
E não podemos esperar mais.
*Presidente licenciado da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.