Enquanto forças conservadoras tentam reduzi-lo ao suposto repúdio ao governo Dilma, os movimentos sociais buscam interferir na agenda pública
Najla Passos – Carta Maior
Um ano após a explosão dos protestos de junho, o professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), cientista social e jornalista Paulo Roberto Leal acredita que ainda é difícil mensurar o seu legado. Segundo ele, ao contrário de outras grandes manifestações populares com focos específicos – como as Diretas Já ou o Fora Collor – a heterogeneidade das pautas levadas às ruas no ano passado dificulta a verificação dos efeitos dessas manifestações.
De qualquer forma, o professor alerta que a disputa pela memória simbólica dos protestos segue polarizada. “De um lado, uma parcela mais conservadora da sociedade, com amplo acesso à mídia hegemônica, ainda busca associar as manifestações ao suposto repúdio ao governo Dilma. De outro lado, estão, por exemplo, os movimentos sociais – que tentaram e continuam tentando agendar no debate público as suas pautas históricas”, avalia.
Neste contexto, ele avalia o papel da mídia hegemônica. Papel este que é, nas palavras dele, “o de não querer discutir o fato de que a insatisfação manifestada nas ruas inclui críticas também a ela. O de lutar para ocultar o debate – feito em todo o mundo democrático – sobre como é necessário desenhar políticas de comunicação que aumentem a polifonia do sistema”.
Confira a entrevista!
Carta Maior – Um ano depois dos protestos de junho, já dá para apontar o legado deixado pelas manifestações?
Paulo Roberto Leal – Dada a heterogeneidade daqueles protestos (em termos de temas, de estratos sociais que foram às ruas, de valores ideológicos), é difícil supor que os seus efeitos possam ser facilmente verificáveis, como aconteceu com grandes manifestações de massa do passado. Em 1984, na luta pelas Diretas Já, ou em 1992, no Fora Collor, as possibilidades de avaliação do sucesso ou do fracasso dos movimentos eram relativamente simples. Em 2013, como produzir uma leitura clara diante de uma agenda tão ampla, difusa e até mesmo contraditória? Exemplos não faltam: vi fotos de um jovem que segurava dois cartazes – numa mão, pela ampliação e melhoria da saúde e da educação públicas; noutra mão, pela diminuição de impostos e pela redução do tamanho do Estado. As duas pautas não são convergentes entre si: mesmo que combatamos a corrupção e a má gestão – algo que efetivamente precisamos fazer -, não é razoável supor que o acesso universal à educação e à saúde públicas de qualidade possa ser feito no bojo de um processo que se associe ao projeto liberal de estado mínimo.
CM – Quem são as forças que disputam o sentido simbólico dessas manifestações?
PRL – Ainda está em curso a disputa pela memória do que aconteceu. Uma parcela mais conservadora da sociedade (com amplo acesso à mídia hegemônica) ainda busca associar as manifestações ao suposto repúdio ao governo Dilma – e o fato de que a popularidade do governo federal desde então não mais voltou a se aproximar dos índices de maio de 2013 indicam que esta leitura teve e tem algum impacto. De outro lado, estão, por exemplo, os movimentos sociais – que tentaram e continuam tentando agendar no debate público as suas pautas históricas.
CM – E como se dá essa disputa?
PRL – A disputa pela memória (desses eventos ou de quaisquer outros) se dá pelos instrumentos narrativos do foco e do esquecimento. O que entra – ou o que fica de fora – no discurso sobre um fenômeno implica uma disputa no campo do poder simbólico. Exemplo: é sintomático que os grandes meios de comunicação insistam no fato de que as manifestações significaram repúdio ao sistema político, e tangenciem o igualmente presente repúdio ao sistema midiático.
CM – No contexto das manifestações, o que significou/significa a expulsão dos partidos políticos e a negação da política?
PRL – Essa é outra grande contradição. As demandas trazidas às ruas só podem ser alcançadas com mais política, com mais participação no espaço público, e não com menos. A falsa suposição de que aquela agenda possa se materializar sem a inclusão de partidos revela um DNA conservador: a tese de que seria preciso “alguém de fora” vir limpar a “sujeira da política”. O mesmo argumento podia ser encontrado nas marchas da família que antecederam e clamaram pelo golpe de 1964. Não é preciso fazer muito esforço para lembrar o que aquele clamor produziu nos 21 anos seguintes.
CM – Qual o papel da chamada grande mídia neste contexto?
PRL – O de não querer discutir o fato de que a insatisfação manifestada nas ruas inclui críticas também a ela. O de lutar para ocultar o debate – feito em todo o mundo democrático – sobre como é necessário desenhar políticas de comunicação que aumentem a polifonia do sistema.
CM – Por que a dificuldade do jovem brasileiro de discutir um projeto coletivo para o país?
PRL – Não creio que se possa generalizar, porque esta geração de jovens tem tanta heterogeneidade interna quanto qualquer geração anterior. A grande luta ideológica talvez deva ser a do convencimento de todos – jovens e não jovens – de que o discurso do “deixa eu cuidar da minha vida”, o discurso do individualismo, não melhora a vida de ninguém – muito pelo contrário.
CM – Às vésperas da Copa do Mundo, o que podemos esperar?
PRL – Se as manifestações de 2013 ocorreram durante a Copa das Confederações exatamente porque se percebeu que elas teriam maior visibilidade naquele período, um evento ainda maior, como a Copa da Mundo, certamente representará novamente um cenário estimulador de movimentos de rua. Contudo, o fato de que ações violentas se acentuaram ao longo de 2013 pode desestimular a participação de setores que estiveram nas ruas em 2013. Logo, há alta probabilidade de que ocorram manifestações, mas há também variáveis que podem nos levar à suposição de que elas talvez não mobilizem tanta gente. Mas essas são meras suposições – assim como ninguém antecipou a magnitude dos eventos de 2013, não creio que alguém possa ter certezas absolutas sobre o que virá.