Paulo Victor Chagas – Repórter da Agência Brasil. Edição: Valéria Aguiar
Perda de territórios tradicionais, transferência forçada e exploração de mão-de-obra foram alguns dos casos de violência sofridos pelos povos indígenas durante a ditadura militar. “Nossa história é longa, triste e cheia de sangue, lágrimas e sofrimento”, contou o antigo cacique Ofaié, Ataíde Francisco Rodrigues, durante audiência pública promovida ontem (26) pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
“Hoje somos compostos por Ofaié, Kaiowá, Terena e não-indigenas, somos o restante de uma etnia que no final do século XIX éramos duas mil pessoas e hoje somos apenas 8 falantes da língua Ofaié”, diz ele.
“Eu paro e reflito o que aconteceu no passado foi um massacre, um verdadeiro extermínio, onde um boi teve mais valor que a vida de um índio, que a vida de um ofaié”, relatou José Gomes, atual cacique da etnia. No segundo dia da audiência na cidade de Dourados (MS), José Gomes disse que seu povo foi declarado extinto nos anos 1970 e no final da década perdeu seu último pedaço de terra tradicional. Segundo ele, os Ofaié foram forçados a conviverem com outros povos depois que a terra em que ocupavam foi entregue pela Funai a pecuaristas.
Após serem expulsos da ilha em que viviam, tomada pelo Exército em 1972 e arrendada para pecuaristas, os índios Guató se espalharam por vários municípios próximos a Corumbá (MS). “Os Guató que ali viviam foram expulsos pelo gado, pois não tínhamos costume de criar animais, mas de ter pequenas roças”, lembrou o indígena Zaqueu, de acordo com a assessoria de comunicação da CNV.
Justino Francisco Samuel foi explorado por uma usina de açúcar e álcool nos anos 1960 e 1970, junto com 40 terenas recrutados para trabalhar na empresa. Segundo seu relato, os terenas foram perseguidos por fazendeiros e autoridades, incomodados com as suas expedições tradicionais de caça e extrativismo.
Os depoimentos revelam a participação de funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em violações de direitos humanos contra os povos. A audiência também ouviu a coordenadora regional da Funai em Campo Grande, Ana Beatriz Lisboa. “Eles sabem que no passado o governo não tinha esse respeito com a questão cultural, a questão tradicional, a própria forma de vida dos povos indígenas. Como o SPI era órgão do governo que fazia esse papel, é natural que fizesse a mesma atuação equivocada de todo governo”, disse, conforme registro de estudantes da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) em página criada para acompanhar a audiência.
À tarde, os participantes da audiência pública fizeram uma roda de conversa na Escola Indígena Tengatuí. Genésio Farias foi apresentado como o primeiro professor da Terra Indígena Cachoeirinha, e sua fala na língua original foi traduzida simultaneamente. Segundo ele, muitas mortes e acidentes envolvendo os índios, como a reintegração de posse de uma fazenda, não tiveram uma resposta efetiva do Estado.
“Meu povo vem sofrendo há muito tempo, muito antes desse período da ditadura. Quando começou a se formar fazendas ao redor das aldeias, começou a sofrer muito mais, trabalhando nessas fazendas de campos de colonos”. Genésio conta que um acidente de trabalho e um incêndio em um ônibus que transportava estudantes causaram mortes e nenhuma família foi indenizada.
No primeiro dia de audiência, o índio guarani Bonifácio Reginaldo Duarte contou o processo de trabalho forçado e espancamento pelo qual passaram índios transformados em prisioneiros. Estes depoimentos foram documentados e ajudarão a compor o relatório final da CNV. Eles poderão servir como base para possíveis pedidos de indenização coletiva. Esse e outros tipos de ações compensatórias não são papel da comissão.