O funcionamento dos cubículos para onde eram levados os presos políticos é o tema do livro Poder e Desaparecimento, da cientista política Pilar Calveiro
por Marsílea Gombata – Carta Capital
Nu, encapuzado, acorrentado pelos pés e obrigado a permanecer agachado. Sem poder se mexer ou falar, as horas iam ficando cada vez mais pesadas na escuridão das chamadas “cuchetas” – cubículos de 80 centímetros de altura, sem teto e de paredes de divisórias de madeira. A estrutura vazada permitia aos guardas monitorar todos os prisioneiros simultaneamente dentro da Escola de Mecânica da Armada, que funcionou como uma espécie de “campo de concentração” da ditadura na Argentina. O espaço controlado pela Marinha argentina era o exemplo daquilo que funcionava, ao mesmo tempo, como criação periférica e medular do regime.
O que mais angustiava os presos sem detenção legal era a incerteza em relação ao que estava por vir, como descreve a cientista política Pilar Calveiro em Poder e Desaparecimento (Boitempo).
O livro, que reconstrói minuciosamente o aparato de centros de desaparecimento forçado, pode ser comparado a É Isto um Homem? de Primo Levi, sobre os campos de concentração nazistas ou mesmo A World Apart: The Journal of a Gulag Survivor, de Gustav Herling, sobre os gulags soviéticos. Diferentemente de ambos, escritos em primeira pessoa, Poder e Desaparecimento repassa o período dos anos de chumbo argentinos em terceira pessoa para dar um tom mais analítico a características macabras da ditadura, como as maternidades improvisados para prisioneiras grávidas darem à luz antes de serem assassinadas, e seus filhos (eram cerca de 500), doados pelos militares sem o consentimento da família. O ato era chamado de “transferência”: os prisioneiros eram levados a estradas, campos ermos e aos famosos voos da morte – ou seja, eram lançados ao mar ainda vivos.
Além dos 30 mil desaparecidos, a ditadura argentina contou com 340 campos de concentração a extermínio, que funcionaram de 1976 a 1982. Há registros deles em 11 das 23 províncias do país. Além disso, estima-se que tenham passado por esses centros entre 15 e 20 mil pessoas, das quais 90% foram assassinadas.
“Um desaparecido é alguém sobre quem não se registra a detenção e, por isso, não há possibilidade de se identificar o que aconteceu com essa pessoa. Um desaparecido é, portanto, uma pessoa com a qual se pode fazer qualquer coisa. Além das torturas, ele estava sujeito a tudo o que se pode imaginar, pois, no fim, seu corpo iria desaparecer e ser eliminado”, explica.
Diante de um passado envolto em tantos pesadelos, o que levou a prisioneira “362” da Esma a revolver tantas dores? “Eu precisava entender o que havia acontecido”, explicou a CartaCapital. “Tratei de estudar ciência política para entender como esse fenômeno se espalhou pela Argentina.”
Colaboração civil. Atual professora da Universidade Autônoma de Puebla, no México, onde se exilou nos anos 70, Pilar lembra que a ditadura comumente chamada de militar não envolveu apenas a repressão de agentes das três armas, como também poderosos setores da sociedade argentina.
Como ressalta no livro, “as Forças Armadas foram se tornando o núcleo duro e homogêneo do sistema, com capacidade para representar e negociar com os setores decisivos seu próprio acesso ao governo. A grande burguesia agroexportadora, a grande burguesia industrial e o capital monopolista se tornaram seus aliados, alternada ou simultaneamente. (…) Esse traço foi fundamental no marco de uma nação na qual as classes dominantes não tinham conseguido forjar uma aliança estável e os partidos políticos atravessavam uma profunda crise de representação em uma sociedade complexa e ambivalente.”
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.