Por Roberto Ramírez, de Buenos Aires para o Correio da Cidadania
A corrida cambial produzida pela queda das reservas deixou aberta a porta para uma possível saída antecipada do governo. O tempo que tiver a partir de agora será como uma prova de sobrevivência própria.
Se continuar assim, é duvidoso que chegue em 2015, apesar de o empresariado, a oposição patronal e a burocracia sindical quererem que Cristina Kirchner complete seu mandato. Mas se trata de um governo debilitado, sobre o qual vem explodindo uma bomba após a outra. A escalada dos preços, a crise policial, os apagões da eletricidade no final do ano e, agora, a crise cambial parecem mostrar que o ciclo político de Cristina está se esgotando e outra coisa virá.
Mas, que outra coisa? Isso dependerá da luta de classes… Que também inclui o que se faça no campo da esquerda revolucionária.
O dólar nas nuvens
De 22 a 23 de janeiro, o governo deixou correr uma grande desvalorização do peso. O dólar “oficial” escalou de 6 para mais de 8 pesos. No dia 24, anunciou que se “afrouxavam” as restrições para compra de dólares. O objetivo era reduzir o vertiginoso crescimento do dólar “paralelo” (chamado “blue”) para aplacar expectativas de uma desvalorização maior. Mas o dólar paralelo continuou em alta.
O que está em curso é uma corrida cambial contra o peso. Essas corridas se produzem quando o peso perde seu respaldo em divisas pela queda das reservas do Banco Central. Ninguém quer ficar com peso, mas sim com moedas firmes, como o dólar ou o euro.
Um segundo índice crítico (sobretudo para o bolso dos trabalhadores) é o imediato traslado da desvalorização para os preços.
Os preços gerais da economia argentina não se estabelecem em moeda nacional, mas em relação a seu valor em dólares. Se o peso desvaloriza, os preços devem subir para que as mercadorias não se desvalorizem. Isso se chama manter seu valor real. Assim, nos últimos dias muitos produtos não tinham preços e foram retirados de venda. Os que voltaram tinham aumentando de 15% a 20%. Isso se somou a uma prévia escalada de preços, registrada desde dezembro.
A expectativa é que o resto dos preços também aumente; em primeiro lugar, os serviços, a eletricidade, o gás, a água, o transporte público etc.
É o que pedem, em uníssono, os patrões: que o governo vá até o fim no caminho do ajuste brutal que está implementando. Quer dizer, que suba os preços de tais serviços, reduza subsídios que os mantinham baixos para os setores populares e, no geral, baixe os demais gastos do Estado.
Só assim, dizem, vai se conseguir o “aumento da competitividade” que está se buscando com a desvalorização. Isso já começam a fazer muitos governadores de províncias, que implementam seu próprio ajuste: congelamento do emprego público, demissões e outras medidas do tipo.
Salário: o único valor da economia que não varia há meses
Isso nos leva aos salários, o único valor da economia que não se moveu.
O lento mecanismo institucional das “paritárias” (organismos de negociação anual de salários e condições de trabalho), e a conduta de burocratas sindicais, que nem sequer reclamam um aumento de emergência para atenuar a disparada de preços, fazem com que a renda dos trabalhadores tenha ficado congelada. No meio da escalada vertiginosa de preços que se vive, o valor do trabalho ficou petrificado.
E essa é a essência do atual plano econômico do governo “nacional e popular”: que a classe trabalhadora pague assim as contas da crise!
As taras do capitalismo dependente
A corrida cambial está abrindo uma sorte de “crise geral”, comparável com outras crises vividas no passado. A Argentina é um país caracterizado por um grande dinamismo político-social. Isso tem a ver com a “modernidade” relativa de suas relações sociais, com um nível cultural médio bastante alto de sua população, e uma classe trabalhadora que abarca 70% da população ativa, além de um proletariado industrial que segue conservando importância e tradição de luta.
Esses fatores operam sobre o pano de fundo de uma economia capitalista caracterizada por uma industrialização de relativa importância, mas que nunca pôde superar os traços de “semi-industrialização”, como definiu brilhantemente o historiador Milcíades Peña. Isto é, há “ilhas” de adiantamento produtivo dentro de oceanos de atraso econômico relativo. Assim se configura uma economia extremamente dependente do mercado mundial.
Isso motiva traços persistentes, que periodicamente explodem em graves crises gerais. O “choque” entre essa modernidade geral de suas relações sociais, entre essas tradições de luta elevada de seus explorados e oprimidos, em contraste com uma base econômica caracterizada por insuperáveis traços estruturais de debilidade. Esse dinamismo de sua vida política, social, reivindicatória e sindical, no marco do atraso relativo da economia, leva, então, o país aexplosões periódicas de crises gerais, a última delas o argentinazo de 2001/2002.
A crise de fundo evidenciada na corrida cambial não é a primeira crise do tipo no país. É mais uma dessas crises “recorrentes”, que explodem a cada tantos anos. Sua razão? A fragilidade da economia dependente da Argentina e sua incapacidade de gerar suficientes divisas. Tradicionalmente, o que aportou divisas “reais” ao país foi a produção agrária. A indústria, por não ter uma ramificação produtiva integrada, e depender da importação de partes para levar adiante a produção, segue sendo deficitária em divisas.
Vem daí o mecanismo histórico de crises recorrentes da economia argentina: o chamado “stop and go”. Chegada a um certo ponto, a economia se paralisa por falta de divisas. Isso conduz às desvalorizações periódicas, às corridas cambiais, às escaladas inflacionárias e outros fenômenos econômicos como os que se vivem hoje.
Essa crise está se repetindo mais uma vez, porque o relato K da “década ganha” é só uma fábula. O kirchnerismo, em dez anos de governo, não realizou uma só modificação estrutural do funcionamento no capitalismo dependente da Argentina. Por isso, a responsabilidade política da crise recai inteiramente nele.
O jogo das comparações
Estamos às portas de outra crise geral, um fenômeno recorrente da Argentina. Qual o “grau” de tal crise? Nas últimas décadas, se viram várias, que podem servir de comparação.
Uma foi o famoso Rodrigazo, em junho de 1975, que deslocou o governo de Isabel Perón. Mas essa crise não foi só uma crise econômica. Veio de um evento da luta de classes. Foi a crise mais grave da Argentina, desde o ponto de vista do domínio burguês. O país vivia uma situação pré-revolucionária desde o Cordobazo de 1969, caracterizada pela ascensão do proletariado industrial, cuja vanguarda avançava a posições classistas e, inclusive, revolucionárias. E que estava construindo coordenações interfabris, que transbordaram os sindicatos burocráticos e impuseram greve geral. Não à toa, essa crise geral terminou com um sangrento golpe de Estado, em março de 1976.
Outra importante crise geral se deu nos fins dos anos 80. Obrigou a saída antecipada do governo do presidente Raúl Alfonsín (União Cívica Radical), que adiantou a transmissão do mandato a seu sucessor já eleito, o peronista neoliberal Carlos Menem. Mas isso não resolveu a crise. Houve longos anos de soçobra, com picos hiper-inflacionários e suas consequências sociais: saques, desmandos, explosões, conflitos trabalhistas. Mas houve um importante atenuante: o grau de radicalização política não tinha nada a ver com os anos 70: a ditadura militar não tinha sido em vão.
No começo do novo século, no final de 2001, viveu-se o Argentinazo. Economicamente, expressou o esgotamento do ciclo econômico anterior e sua política neoliberal, que havia imposto a paridade cambial com o dólar (1 peso = 1 dólar) para combater a inflação. O que levou a uma deflação que deixou 40% da população ativa desempregada. A crise econômica, em um sentido, foi mais grave nos anos 70 e, inclusive, nos anos 80 (o grau de queda do PIB e do desemprego foi substancialmente maior).
Ao mesmo tempo, e diferentemente da crise sob Alfonsín, entre os explorados e oprimidos se produziu uma irrupção independente de massas, nos últimos dias de 2001, que fez cair o presidente De La Rua. Depois, desatou-se um amplo processo de lutas de uma vanguarda de massas que originou movimentos de luta e organização de grande riqueza: piqueteros (desempregados), assembleias populares e fábricas recuperadas. Com o tempo e a assunção dos Kirchner, em 2003, esses movimentos se foram reabsorvendo até desaparecer.
A grande contradição do Argentinazo foi que a classe trabalhadora ocupada, sobretudo o proletariado industrial, não foi protagonista, como nos anos 70; nem sequer teve a participação dos fins dos 80. O terror da “morte social” que significa o desemprego e o papel sinistro da burocracia sindical mantiveram-na passiva.
A chave está na luta de classes
Assim chegamos à atualidade. Parece que estamos às portas de outra crise geral como as comentadas. Isso tingirá o período próximo e marcará a transição do atual governo ao vindouro: veremos se com saída antecipada, ou não, como nos casos que comentamos. Isso dependerá de que se produzam (ou não) saltos na luta de classes.
Isso não significa que não haja mediações que poderiam amortecê-la. Há várias importantes. Uma, que se vive uma crise econômica grave, mas em condições econômicas gerais que não são como as de 2001. O “terremoto” na base da atual crise é de uma escala menor, no entanto.
Além do mais, a situação do governo e do regime político não é tão precária como nas crises anteriores. Cristina K. não é Isabelita Perón, nem De la Rúa. Talvez seja como Alfonsín, mas há de se ver.
Tampouco a democracia burguesa é tão vulnerável como nos anos 70 ou estamos no clima “que se vayan todos!” do Argentinazo… Ainda que a passada irrupção da crise policial e os saques em dezembro mostrem a “outra cara” da Argentina, que vinha de um festival eleitoral.
Tomemos a iniciativa: convocar uma mobilização contra o ajuste
A esquerda classista conseguiu mais de um milhão de votos – entre a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) e o Novo MAS (Movimento ao Socialismo) – nas eleições de 2013. Inclusive a FIT conseguiu alguns parlamentares nacionais e provinciais. Mas, como alertamos, não há que se fazer uma transferência mecânica entre os votos obtidos e uma radicalização de grandes faixas de trabalhadores.
Mas também colocamos que, ao se incrementar a luta de classe, se faria possível uma radicalização que dê conteúdo ao voto. Isso não ocorrerá por processos automáticos. A esquerda ainda dirige pouco; a que dirige os grandes contingentes de trabalhadores é a burocracia sindical em suas diversas expressões.
Mesmo assim, isso não tira o fato de que a FIT se mostrou, em geral, carente de iniciativas para ação. O que mais consegue, de vez em quando, é emitir declarações. Aí termina sua ação comum.
Enquanto isso, parece-nos que, desde a esquerda, devemos impulsionar imediatamente umainiciativa política, que seja algo mais que declarações. A esquerda revolucionária deveria ser a primeira a sair à rua contra o brutal ajuste do governo e das patronais, coisa que a burocracia sindical está deixando passar.
Não temos a chave, ainda, para desatar grandes lutas. Não podemos convocar, por exemplo, uma greve geral. Mas, enquanto isso, é uma obrigação participar com uma política correta, militante, não parlamentarista, nas lutas que já ocorrem. E, principalmente, tomar a iniciativa de convocar uma mobilização política contra o brutal ajuste K., para que não siga passando à vontade.