Eram os Acreanos Astronautas?

Por Eduardo Góes Neves do Amazônia Real

Quem tem mais de quarenta anos deve se lembrar do nome de Erich von Däniken, que publicou, no final da década de sessenta, o livro “Eram os Deuses Astronautas?”.

Nessa obra, von Däniken defendeu a ideia de que algumas das estruturas monumentais construídas na antiguidade teriam sido obras de extraterrestres. O fatos de algumas essas estruturas – como as linhas de Nasca, no litoral do Peru, as pirâmides egípcias e os Moais da ilha de Páscoa – terem sido construídas fora da Europa, por indivíduos fisicamente parecidos com atuais polinésios, ameríndios ou habitantes do norte da África, devem ter servido de combustível para a imaginação delirante de von Däniken.

Para muita gente é mesmo difícil conceber que estruturas tão sofisticadas tenham sido produto do engenho e arte de povos que não tenham parentesco biológico com os europeus e seus descendentes que, a partir do século XV DC, se espalharam pelo planeta. É mais fácil, nessa concepção, apelar para extraterrestres que conceder que povos não-europeus tivessem alguma capacidade intelectual qualquer. Parece piada, mas é sério!

Quando digo que sou arqueólogo, a pergunta mais comum que ouço é: “mas tem alguma coisa para um arqueólogo pesquisar no Brasil?”. O que reflete, por um lado, a dificuldade que têm os arqueólogos em divulgar o que fazem e, por outro, a noção de que não há mesmo nada para ser estudado por um arqueólogo que trabalhe no Brasil.

O caso da Amazônia é ainda mais sério, porque pode ter dimensões trágicas: durante a ditadura militar, a noção de que havia ali uma floresta virgem, vazia, sempre desabitada, uma “terra sem gente para uma gente sem terra” levou à morte, por doenças ou pela bala, de grupos indígenas que habitavam, por exemplo, as regiões onde está hoje o Estado de Rondônia.

Nos últimos vinte anos essa premissa vem sendo derrubada pela descoberta de sítios arqueológicos por todas as partes da Amazônia, inclusive em áreas distantes dos grandes rios. Sabe-se, por exemplo, que as montanhas da serra dos Carajás são ocupadas há mais de 8.000 anos, conforme mostrado pelas pesquisas de Marcos Magalhães, do Museu Emilio Goeldi, de Belém.

Na terras altas da Guiana Francesa e Amapá arqueólogos brasileiros e franceses, como João Saldanha e Mariana Cabral, do IEPA, em Macapá, têm descoberto dezenas de sítios, chamados “montaignes couronnes”, ou montanhas coroadas, em francês, que eram aldeias localizadas no alto de colinas e cercadas por valas com provável função defensiva, ocupadas no primeiro milênio DC.

É provável, no entanto, que a descoberta recente que mais tem chamado a atenção de arqueólogos e leigos tenha a ver com os chamados geoglifos localizados nos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia, no Brasil, e também nos Departamentos de Pando e Beni, na Bolívia, onde são conhecidos como “zanjas”.

A descoberta dos geoglifos não é tão recente assim. Nos anos 80, Ondemar Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira, do Rio de Janeiro, já havia relatado sobre essas estruturas em suas pesquisas no alto Purus. Foi, no entanto, a partir do final da década de 90 que, graças a Alceu Ranzi, paleontólogo da Universidade Federal do Acre, que geoglifos passaram ser objeto de estudos sistemáticos.

Alceu os avistou pela primeira vez do céu, em uma viagem de avião entre Rio Branco e Porto Velho: para ele as estruturas geométricas, formadas por valas circulares e quadrangulares, com centenas de metros de diâmetro ou de lado, e três ou quatro metros de profundidade, tinham que ter uma origem humana e não natural.

É verdade que as observações de Ranzi foram possíveis pelo desmatamento que praticamente destruiu as florestas do leste do Acre. Posteriormente os arqueólogos Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará, e Martti Pärssinen, da Universidade de Helsinki juntaram-se a Ranzi e formaram uma equipe, composta por brasileiros e estrangeiros, que têm realizado escavações e mapeamentos de geoglifos pelo Acre e áreas adjacentes.

Os achados que têm feito são formidáveis: mais de quatrocentos geoglifos foram localizados desde Boca do Acre até Brasiléia. Embora tenham começado a ser construídos ao redor de 500 AC, parece que a maior parte da atividade construtiva ocorreu no primeiro milênio DC.

Os estudos sobre os geoglifos estão ainda em seu início. Mesmo assim, eles colocam algumas questões intrigantes: a primeira tem a ver com o contexto no qual foram produzidos. Em muitos deles não há evidências de habitação, que poderiam ser atestadas por fragmentos de cerâmica. A presença de fragmentos de carvão, indicadores naturais do uso do fogo para abertura da floresta, também é escassa, o que aumenta ainda mais as dúvidas a respeito da maneira pela qual foram construídos: como cavar valas circulares, com mais de dois metros de profundidade e construir círculos perfeitos em meio a uma região coberta pela floresta sem o uso do fogo e, principalmente, com poucos instrumentos de pedra polida, já que não há afloramentos rochosos na bacia do alto Purus?

A presença de artefatos de pedra pode indicar a ocorrência de rotas de comércio com outras partes da Amazônia, como a bacia do Madeira, onde afloramentos rochosos são abundantes nas corredeiras desse rio. Infelizmente, muitas dessas cachoeiras estão sendo agora destruídas, bombardeadas ou afogadas para a construção de usinas como Santo Antonio ou Jirau. A cachoeira do Teotônio, por exemplo, outrora conhecida por sua piscosidade, jaz hoje submersa, quieta, sendo atulhada por toneladas de sedimento, no fundo do lago da Usina de Santo Antonio.

Ainda no Acre, também na bacia do Purus, há sítios formados por estruturas monticulares, provavelmente aterros para a construção de casas, dos quais saem estradas lineares, largas, com vários quilômetros de extensão. O arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, já havia mapeado estradas desse tipo na bacia do alto Xingu, onde trabalha há mais de vinte anos em parceria com os índios Kuikuro.

Os achados do Acre vêm confirmar o padrão descoberto de maneira pioneira por Heckenberger e mostrar que ele estava disseminado pelo sul da Amazônia, como o próprio Mike previra, de maneira genial, ainda na década de 90 do século passado.

O avanço das pesquisas no Acre e Rondônia vai nos permitir, paulatinamente, vislumbrar um quadro radicalmente novo sobre a ocupação antiga dessa região. Esse quadro vai nos forçar, arqueólogos e antropólogos, a formular novas teorias para descrever um padrão de organização social e política desconhecido na literatura: o de sociedades com relativa densidade demográfica, envolvidas e mobilizadas na construção de estruturas monumentais e dedes de comércio, mas sem a presença de aparatos centralizados de poder, como o estado.

Tudo isso em áreas de terra firme, normalmente distantes dos grandes rios, lugares onde, teoricamente, a ocupação humana com tecnologias ameríndias só seria possível sob condições baixa densidade demográfica e nomadismo.

Há pouco mais de cem anos, quando participava da comissão de limites entre o Brasil e o Peru, Euclides da Cunha esteve no alto Purus, descrito por ele como um lugar onde “a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta toda a decoração interior”. Mal sabia Euclides que a decoração interior estava ali, sob as árvores altas e encopadas que recobriam essas maravilhosas estruturas geométricas de terra, estruturas essas construídas não por astronautas, mas pelos ancestrais dos povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros e citadinos que até hoje vivem no Acre.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.