Carlos Lessa: “BNDES não é corretor de compra e venda”

O Economista Carlos Lessa, ex- presidente do BNDES e sócio do Casarão Ameno Resedá, no Catete Hudson Pontes / Agência O Globo Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/bairros/os-encantos-misterios-do-catete-por-carlos-lessa-9797511#ixzz2nST5oK2p  © 1996 - 2013. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.
Carlos Lessa. Foto: Hudson Pontes / Agência O Globo

Por Rogério Daflon*, do Canal  Ibase

O professor e economista Carlos Lessa foi presidente do BNDES de janeiro de 2003 a novembro de 2004. Teve uma experiência anterior no banco, no qual dirigiu a área social do BNDES de 1985 a 1989. Antes de começar a entrevista ao Canal Ibase, Lessa, de 78 anos, quis deixar algo claro: “O BNDES deve ser examinado criticamente, como objeto de avaliação e debate públicos, mas nunca como uma visão neoliberal. A tendência neoliberal é a seguinte: se puder acabar com o BNDES acaba e se não puder, converta-o em banco de investimento, porque, deste jeito, repassa recursos a operações privadas. Se vocês concordam com isso, eu vou sair na porrada com vocês”, disse ele, sem conter o riso. Nesta entrevista, Lessa ressalta que o caminho do BNDES deve ser seguido com toda a transparência.

CANAL IBASE:  O seu período na presidência do BNDES foi de crítica ao modelo neoliberal…

CARLOS LESSA: Pois é. Atualmente, estou vendo uma tentativa de acabar com a soberania nacional. Agora, a presidência da República autorizou até 30% de ações do Banco do Brasil na Bolsa de Nova York. O Brasil se saiu melhor nessa última crise mundial, por uma razão muito simples com a qual os atuais governantes não têm nada a ver: tanto o Banco do Brasil quando a Caixa Econômica Federal quanto o BNDES eram instrumentos de políticas públicas. E, apesar do Banco Central estar inteiramente impregnado da doutrina do Conselho de Washington  e serventuário do modelo de contração neozelandês, os três outros bancos se comportaram de forma anticíclica. Em qualquer crise, os bancos privados são pró-cíclicos. Os europeus descobriram isso e já não têm mais banco público. Por isso, agora na Europa há uma nítida tendência à re-estatização dos bancos.

CANAL IBASE: Como era o ritual para se tomar uma decisão no BNDES no seu período como diretor e presidente desta instituição?

CARLOS LESSA: As condições que o banco impôs e as razões que o levaram a apoiar aqueles projetos devem ser públicas. Sobre isso não pode haver sigilo. Quando presidente do banco, eu recebia toda a imprensa uma vez por semana e respondia às perguntas. O procedimento padrão do banco, pelo menos até o momento em que fui presidente, era o seguinte: há uma consulta (um pedido de financiamento) ao BNDES e há um chamado Comitê de Prioridade, composto por todos os superintendentes do banco e no qual os diretores poderiam ter acento. O Comitê decidia se este ou aquele pedido era ou não enquadrado nas prioridades do banco. Ao fazer isso, o projeto caia automaticamente numa diretoria, que o transferia para uma superintendência, que o transferia, por sua vez, para  um chefe de departamento; e este, para um grupo de trabalho. Se houvesse uma especificidade de tecnologia, teria uma avaliação de um grupo de engenheiros. Se houvesse uma complexidade jurídica, tinha uma análise mais acurada de um grupo de advogados. Seja como for, este grupo de trabalho produzia um relatório de análise, que tem de ir ao chefe do departamento, que examinava também o relatório de análise junto com assessores. Esse era o ritual interno pelo qual se chegava a uma decisão. Isso era padrão de toda e qualquer operação do BNDES, enquanto fui diretor, enquanto fui presidente. O que quero dizer é que um projeto ganhava transparência ao longo da sua caminhada até a reunião de diretoria. E não haveria decisão em reunião de diretoria sem um relatório de análise extremamente lido por outras hierarquias. Se todos aprovassem, o projeto era contratado.

CANAL IBASE: Mas na sua época como diretor e presidente como se tinha acesso a esses contratos?

CARLOS LESSA: O contrato tem de ser registrado em cartório público. Há, portanto, como saber as características de como uma operação foi contratada e todas as cláusulas, salvaguardas e as ressalvas. Só que sai caro mandar tirar certidões desses contratos em cartório. Pelo menos em tese uma comissão de inquérito pode  devassar todos os contratos assinados: magnitude, hipotecas, condições de liberações de recursos. O BNDES normalmente contrata segundo um cronograma. E se o projeto executa certos passos, vai recebendo outras quantidades de financiamento. Havia uma caminhada interna do banco em que diversos níveis de hierarquia examinavam o mesmo processo. Isso o Lula achava ruim, porque os empresários se queixavam muito. E com isso os empresários passaram a reclamar muito desse processo, porque no meio dele surgiam várias perguntas que ele tinha de responder.  Se um empresário quer financiamento para um projeto e ele apresentasse uma tecnologia da Áustria, mas a da Itália é mais em conta, ele tinha de explicar por que optara pela tecnologia austríaca.

CANAL IBASE: O senhor poderia dar mais exemplos do comportamento dos empresários?

CARLOS LESSA: Como eu disse, os  empresários faziam uma enorme pressão para não dar as informações, embora estivessem pedindo financiamentos.  E o BNDES não emprestava dinheiro com facilidade. Lula na época pediu para que eu desse uma entrevista coletiva para falar sobre isso. Na época, eu falei que o BNDES não era uma padaria e que o banco levava tempo para tomar uma decisão fundamentada antes de levar à frente um empréstimo. Os padeiros protestaram, e eu recebi vários tipos de pães, que distribui no BNDES (risos). De qualquer forma, a demora era devido justamente à relutância dos empresários em dar informações que nós queríamos. Se o empresário não esclarece as dúvidas do BNDES, a análise de crédito não avança. E isso deve irritar muitos os empresários.

CANAL IBASE: Há a hipótese então de que no financiamento dado ao grupo de Eike Batista tenham sido feito poucas perguntas…

CARLOS LESSA: Eu acho que não foi feita nenhuma. Mas eu só posso prestar esclarecimento sobre o banco até o momento em que deixei de ser presidente…

CANAL IBASE: Como era sua relação com a imprensa na sua época da presidência?

CARLOS LESSA: Eu fui o primeiro presidente do BNDES a ter cassado o direito de fazer uma conferência pública na passagem do cargo. Eu não iria atacar o presidente Lula, ia apenas prestar contas à sociedade. Eu me reunia uma vez por semana com a imprensa. Os temas mais explosivos vinham à tona.  A imprensa me perguntava, e eu falava os relatórios de análise das operações e respondia. Hoje, a maior parte da imprensa não sabe os contratos do BNDES. Na minha época quando presidente, havia grau de transparência consecutiva desde o enquadramento na prioridade até o voto da diretoria.

CANAL IBASE: Qual é a política principal hoje do BNDES na sua visão? E ela está atrelada a algum modelo de desenvolvimento?

CARLOS LESSA: Modelo de desenvolvimento não é tarefa do BNDES. Isso é tarefa da Presidência da República e seu Ministério do Planejamento. Mas se não há projeto nacional e hoje em dia não há projeto nacional, o BNDES tem que trabalhar com alguma hipótese sobre qual é o padrão de desenvolvimento brasileiro. Atualmente, o BNDES, eu acho, quer dar às empresas brasileiras condições de concorrência internacional fora do Brasil. É o que está na cabeça de grupos como Gerdau e Votorantim. Ou seja, todo o apoio às empresas brasileiras que se internacionalizaram. Acho que a política principal é criar multi brasileiras. Não acho que a prioridade seja o desenvolvimento brasileiro.

CANAL IBASE: Como o banco se comporta em relação ao atual modelo de desenvolvimento proposto pelo governo federal, no qual se percebe a reprimarização da economia?  Em 2012, 58% dos financiamentos foram para grandes empresas.

CARLOS LESSA: Se você quiser “reprimarizar” a economia, é perfeitamente possível apoiando grandes empresas.  Por exemplo, se você quer que o país seja exportador de proteínas, você apoia a indústria de frangos e os matadouros. Aliás, se você prestar atenção, o BNDES fez grandes operações com matadouros e a indústria de frango.  Pode ser diferente. Você pode apoiar a indústria de carnes se houver, primeiramente, prioridade de fornecimento de carne para o país. Mas a reprimarização surgiu da ideia de o Brasil como celeiro do mundo. Trata-se de um absurdo, já que ainda há fome no país. O desmatamento da Amazônia vem por conta do boi no pasto ou da plantação excessiva de soja. O país compete no mercado mundial de soja e de proteína vermelha às custas da Amazônia. A reprimarização da economia é um horror e é um fato. E eu lutei muito contra ela quanto estava à frente do BNDES. E acumulei inimigos por causa disso, inclusive o ministro da Fazenda (Antonio Palocci) e da Indústria e Comércio (Luiz Fernando Furlan) da época.

CANAL IBASE: Como o senhor vê o foco do BNDES hoje sobre as grandes empresas?

CARLOS LESSA: Primeiro banco no Brasil que apoiou a pequena e média empresa foi o BNDES, já no tempo de Juscelino (anos 1950). Hoje, o BNDES cresceu de maneira desmesurada o financiamento para grandes empresas, mas também por causa da infraestrutura, que tem o caráter de sinalizar para onde vai a economia. Infraestrutura é área de investimento público e não é para fazer concessão e nem leilões, como estão sendo feitos atualmente. O BNDES hoje está investindo muito em empresas privadas, porque está financiando infraestrutura para concessões privadas. O BNDES deveria investir em empresas públicas, mas eles foram sendo eliminadas. Seja como for, eu tentei recuperar o BNDES como banco nacional de desenvolvimento. Tentei inclusive que o BNDES só financiasse somente empresas brasileiras. Tomei muito porrada por isso.

CANAL IBASE: Como o senhor avalia o período Collor e de Fernando Henrique Cardoso em relação ao BNDES?

CARLOS LESSA: Se você tem um instrumento tão poderoso como BNDES, que é a única fonte importante de financiamento de longo prazo do país, tem-se nas mãos o destino das forças produtivas brasileiras. Agora, pode-se ir numa direção ou em outra. Só para ilustrar: quando cheguei à presidência do banco, ele tinha sido desviado de sua função histórica pelo processo de privatização. O BNDES foi pensado para desenvolver as forças produtivas e não para ser corretor de compra e venda de ativos pré-existentes. Houve, porém, uma enorme distorção da função do banco no período Collor e de Fernando Henrique Cardoso.  E aí a distorção é sempre acompanhada de uma cooptação das cabeças e das almas. No período tucano (PSDB) no banco, por exemplo, muitas diretorias do BNDES passaram a seguir direção neoliberal e da privatização. Nessa época, alguns milhões de dólares foram pagos no período tucano a uma consultoria inglesa que disse que o BNDES deveria se transformar num banco de investimento. Quando Lula me convidou para assumir a presidência do banco, eu disse que queria nomear uma diretoria nova. E Lula concordou. Disse a ele que removeria alguns esqueletos. Um desses esqueletos eram operações muito mal feitas de privatização, nas quais o banco não havia recuperado o que havia emprestado.  Outra exigência que fiz foi a de recolocar o BNDES como um banco de desenvolvimento, em vez de investimento. Nos meus primeiros 15 dias, demiti assim todos os superintendentes do BNDES e obviamente ganhei alguns inimigos por causa disso.  E coloquei pessoas, funcionários pelos quais tinha grande respeito, nesses lugares.

CANAL IBASE: Que outras medidas o senhor tomou?

CARLOS LESSA: Cortei alguns contratos com o BNDES. Havia um monte de pessoas penduradas no BNDES ganhando uma fortuna sem não fazer nada. Também cortei os gastos com publicidade. As operações do BNDES da Petrobras eram intermediárias por quatro três bancos privados e o Banco do Brasil. Eu cortei essas operações e passei a emprestar mais barato. Os banqueiros reclamaram, sob a alegação de que eles diluíam os riscos para a Petrobras. Eu disse então que preferia o risco Petrobras ao risco banco. É claro que houve muita insatisfação.  Desativei também as operações de mercados de capitais, a fim de atacar a corrupção. Ficar comprando e vendendo ações no cotidiano é  um perigo enorme, e o BNDES não precisa disso. O BNDES hoje está financiando infraestrutura para empresas privadas.

CANAL IBASE: Como carioca, como o senhor analisa o Rio de Janeiro dos megaeventos?

CARLOS LESSA: Megaeventos em si não são capazes de alavancar o desenvolvimento de uma cidade.  Não são panaceia e nem padrão de desenvolvimento. Eu defendi 200 mil residências populares para o Porto do Rio, mas isso não aconteceu.

CANAL IBASE: O que o senhor mais tem a lamentar em relação ao Brasil?

CARLOS LESSA: O drama nosso é que não há um projeto nacional. Há um discurso de se integrar à globalização. Estamos desmantelando as instituições e salvaguardas nacionais.

*Com colaboração do economista e pesquisador do Ibase Iderley Colombini.

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