A aPROA, coletivo de antropólogos formado com o objetivo de debater o papel do profissional da área que atua em políticas públicas, vem a público apresentar sua manifestação em relação à minuta de Portaria do Ministério da Justiça que visa estabelecer “novas regras” para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto n° 1.775, de 1996.
Entendemos que a nova Portaria reduz os estudos de natureza multidisciplinar, coordenados por antropólogo de qualificação reconhecida, necessários à identificação dos limites das terras indígenas, a mero processo de contraditório administrativo, de modo a inviabilizar a conclusão da primeira etapa do processo demarcatório. No lugar de pautar os estudos circunstanciados por condições mínimas para o seu desenvolvimento, transforma-os em instância de suposta conciliação de conflitos sociais.
É tão ostensiva a redução dos estudos a um processo de contestação e embate, que a Portaria prevê de forma explícita três novos contraditórios, nos artigos 15, 17 e 25, que se somarão ao já previsto no Decreto 1775/96. Além desses 4 novos estágios, ao tempo da elaboração dos estudos, existe um quinto implícito no art. 6, que consiste em possibilidade de contestação simultânea à pesquisa de campo, quando se propõe acrescer ao Grupo Técnico até 12 membros que não são pesquisadores, mas representantes de órgãos da administração sem qualquer vinculação jurídico-administrativa com o processo demarcatório. Tais participantes poderão interferir, litigar, politizar, obstruir, enfim, inviabilizar a consecução de um estudo objetivo e criterioso, resultando – aí, sim – em intensificação de conflitos, na medida em que se dilata indefinidamente o período de insegurança jurídica para indígenas e não indígenas.
É necessário destacar que a extensa lista de órgãos e entes públicos que poderão indicar representantes para acompanhar e participar das atividades de campo atenta contra princípios éticos e metodológicos da Antropologia, que objetiva estabelecer uma relação dialógica com os sujeitos de pesquisa, algo que se torna inviável na presença de múltiplos participantes no processo de pesquisa, com diferentes inserções institucionais.
Outro aspecto que reforça esse caráter de antecipação e redundância do contraditório é a possibilidade prevista no art. 11 da minuta de os interessados apresentarem quesitos ao Grupo Técnico nos moldes das perícias judiciais, uma inusitada e inexplicável tentativa de antecipar o debate judicial, mas que não substituirá ou impedirá sua realização posterior. Além disso, a perícia judicial se dá sobre um objeto claramente definido, no caso, uma terra com limites identificados com base em critérios técnicos, justificados e fundamentados por contemplarem a territorialidade que o Grupo Técnico multidisciplinar identificou. Como, então, periciar um objeto indefinido cuja delimitação se obstrui?
Enfim, a nova portaria, ao invés de contribuir com o aperfeiçoamento do caráter técnico-científico dos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas, tenta transformá-los em instância deslocada de mediação de conflitos, que certamente será assediada por relações de poder conjunturais, via de regra desfavoráveis ao reconhecimento dos direitos indígenas. Somos contrários a essa tentativa, que se apresenta como ato discricionário de um ente que tem o dever poder de zelar pelo reconhecimento dos direitos territoriais dos povos originários do Brasil.
Brasília, 09 de dezembro de 2013.