Populações que vivem nos locais que serviram de refúgio para escravos declaram amor pelos lugares, mas lamentam a falta de empregos e de serviços básicos
Por Paulo Henrique Lobato, em Estado de Minas
União dos Palmares (AL) e Paraopeba (MG) – Erick da Silva, de 8 anos, abre um largo sorriso para dizer que ama o lugar em que mora, numa casa pequena, no alto da Serra da Barriga, de onde a vista alcança léguas e léguas no interior de Alagoas. Lá tem mangueiras, laranjeiras, bananeiras e uma lagoa em que o garoto e seus amiguinhos nadam quase todos os dias enquanto a mãe de Erick, dona Marineida, e outras mulheres lavam roupas. “Aqui é muito gostoso de viver”, diz o menino. A mãe concorda, mas pondera: “É um lugar maravilhoso. Só que faltam empregos”.
Ela e o filho moram no local onde existiu o quilombo dos Palmares, o mais famoso das Américas, criado por volta de 1590 pela princesa Aqualtune – capturada na África e escravizada no Brasil, ela fugiu grávida de um engenho em Pernambuco e fundou o Palmares. O quilombo abrigou mais de 20 mil negros e teve como principal líder Zumbi, assassinado por bandeirantes brancos em 20 de novembro de 1695. O local hoje é o Parque Memorial Quilombo dos Palmares.
O parque, fundado em 2007, é o principal cartão-postal do município de União dos Palmares (AL) e atrai milhares de visitantes todos os anos. Os turistas ficam encantados com os atrativos, como a vista da Serra da Barriga. Muitos, porém, nem sequer percebem que lá vivem 14 famílias de brancos e afrodescendentes, como Erick e sua mãe. Embora eles digam que amam o lugar, enfrentam problemas, como a necessidade de lavar roupas na Lagoa dos Negros, cujo volume d’água baixa bastante durante o período de seca.
O dia a dia no local em que abrigou o quilombo mais famoso das Américas e o cotidiano na comunidade quilombola do Pontinha, a 25 quilômetros de Paraopeba, Região Central de Minas, e fundado por descendentes de Chico Rei, são o tema da última reportagem da série “A real abolição”, que o EM começou a publicar na quarta-feira. As reportagens mostraram que indicadores econômicos e sociais sobre a população negra aumentaram no Brasil nos últimos anos, mas também que há margem para que eles melhorem ainda mais.
Naquele que foi o maior quilombo do Brasil, Erick acompanha quase que diariamente a mãe, Marineida, e a vizinha, Adriana Santos, à Lagoa dos Negros. Enquanto as mulheres lavam roupas, o garoto e seus amigos brincam de mergulhar. A água não é potável. “É cheia de girinos”, alerta o menino. As cartas também não chegam ao lugar. Os moradores precisam buscar as correspondência em União dos Palmares, a 10 quilômetros de lá. Apesar das dificuldades, a mãe dele não deseja deixar o local: “Gostamos deste lugar. Além do mais, estamos aqui há tanto tempo…”.
Já no quilombo da Pontinha, na área rural de Paraopeba, moram cerca de 2 mil pessoas. O local foi fundado por descendentes de Chico Rei, o Galanga. Rei no Congo, ele foi capturado e escravizado numa mina em Ouro Preto. A tradição oral conta que Galanga escondia pó de ouro nas unhas e nos cabelos. Dessa forma, comprou a sua liberdade e a de todos de sua tribo. Por isso, fãs da história dele dizem que Chico foi rei no Congo e rei dos negros no Brasil. Seus descendentes vivem hoje no Pontinha.
O lugar é carente de emprego. A principal atividade dos moradores é retirar do fundo da terra uma espécie de minhocas gigantes, conhecidas como minhocuçus, e vendê-las a pescadores. Leonária Aparecida Moreira e Moreira, de 44, e a filha, Andreza, de 19, vendem a dúzia de minhocuçu por R$ 25. “Gostamos daqui”, conta a mãe, mas ressaltando que o lugar é carente de infraestrutura: não há posto de saúde, o acesso é em estrada de terra e a escola pública não oferece o ensino médio.
“Os moradores de Pontinha só são atendidos no posto de saúde de Paraopeba às quartas-feiras. Portanto, temos dia para ficarmos doentes”, ironiza Leonária. Sua amiga Éster Batista Gonçalves, de 33, lamenta a falta de empregos na região: “As mulheres são as mais prejudicadas, pois os homens ainda conseguem bicos em fazendas da região. O Natal está se aproximando e meu presente de Papai Noel bem que poderia ser um bom trabalho”.
Distância – Ao longo da série “A real abolição”, o EM mostrou que o número de empreendedores negros em micro e pequenas empresas cresceu de 8,6 milhões para 11,1 milhões entre 2001 e 2011, segundo dados do Sebrae. A boa-nova, porém, não chegou com pompa para as famílias que hoje moram no local que abrigou tanto o quilombo dos Palmares quanto o fundado por descendentes de Chico Rei, o Galanga. Ainda assim, dona Marineida, a mãe de Erick, e dona Leonária, moradora do Pontinha, são taxativas em dizer que não pretendem deixar suas casas.
Elas torcem para que, 125 anos depois de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, em 1888, a melhoria dos indicadores sociais e econômicos a respeito da população negra também chegue ao antigo Palmares e aos descendentes de Galanga.