Por Sol Amaya, do el Puerco Espín* – Agência Pública
Mais de 1400 quilômetros e 365 dias os separam dos eventos daquele dia, mas quando eles descrevem o que viveram em 15 de junho de 2012 parecem estar de volta à cena do massacre de Curuguaty: as mãos tremem, os olhos se turvam, a voz falha. Sentados em um bar no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, os camponeses paraguaios Dani Garcete, de 25 anos, e Héctor Ramírez, de 26, baixam o tom de voz e as palavras ficam mais raras.
Ao ser perguntado sobre o confronto no qual 17 pessoas morreram – seis policiais, onze camponeses – durante a operação de reintegração de posse que causou a destituição do presidente Fernando Lugo, Dani limpa a garganta. Hesita. Olhando para a porta de entrada, confessa que quase cancelou a entrevista: não queria falar. Faz um ano que está tentando tirar essas imagens da cabeça, e esquecer o motivo de ter deixado a família e fugido do seu país.
Em Buenos Aires, Dani só conhece Ramírez e Fredy Villalba – ambos também foragidos do Paraguai e da mesma tragédia. Dani olha humildemente para os sapatos azuis – ele e Héctor estão vestidos para uma partida de futebol – e conta que todos os fins de semana se juntam para jogar bola no campo de várzea da comunidade onde moram, na periferia da capital argentina. Antes de mergulhar nas lembranças, crava o olhar na mesa e suspira.
A fuga
A sugestão partiu do irmão de Héctor, que está preso, como outros 13 camponeses que estavam no dia do confronto com a polícia. Alcides Ramirez lhes disse que havia uma possibilidade de sair do país, pelo menos até que os fatos fossem esclarecidos. “Aceitei imediatamente, me arrependi imediatamente”, diz Dani levantando a cabeça, as mãos entrelaçadas sobre a mesa. “Mas depois compreendi que não tinha outra opção”.
Em silêncio, Héctor Ramírez assente com a cabeça. Embora ele vivesse havia cinco anos em Buenos Aires – para onde imigrou em busca de trabalho – desta vez seria diferente. Antes, visitava a sua família no Paraguai sempre que podia. Quando ocorreu a ocupação de Marina Cué, como é conhecida a propriedade onde ocorreu o massacre de Curuguaty, Ramírez estava por ali aproveitando suas férias. Mas decidiu se juntar aos outros sem-terra na ocupação do terreno de 2000 hectares a cerca de 250 quilômetros de Assunção. E, como todos os camponeses, teve seu nome anotado a lápis em um papel pelos coordenadores da ocupação, para pedir alimentos ao governo. Encontrado pela polícia após o massacre, o documento acabou se convertendo em uma lista de “culpados” a serem caçados pela polícia e detidos imediatamente. A investigação oficial sustenta que eles armaram uma emboscada para assassinar os policiais. Estivessem ou não em Marina Cué no dia da desocupação, todos os que figuravam na lista foram acusados de homicídio doloso agravado, homicidio doloso em grau de tentativa, associação criminal e invasão de propriedade alheia.
Foi o político paraguaio Domingo Laíno – do mesmo partido Liberal do então vice-presidente Federico Franco, que se tornou presidente depois do impeachment de Lugo – quem lhes ajudou a fugir do Paraguai. Convencido de que o massacre fora forjado para servir de pretexto para o impeachment, em mais um trágico episódio da conservadora política paraguaia, ele fundou a ONG Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos (PEICC) para fazer uma investigação paralela à oficial, conduzida pelo Ministério Público local. Durante a pesquisa conheceu a mãe de Dani, uma enfermeira que vive em uma comunidade próxima ao terreno de Marina Cué. Ela temia pela vida de seu filho – e pediu que Laino o ajudasse.
Assim como ela, Rubén Villalba, um dos coordenadores da ocupação às terras de Marina Cué, cuja defesa também é paga pelo PEICC, também temia pela vida de Fred Rubén Villaba, seu braço direito na organização camponesa na zona rural de Curuguaty. Rubén continua preso e é acusado de ser o principal “mentor” do massacre. Fred estava próximo a Rubén Villalba durante a troca de tiros com a polícia. Corria grande perigo se continuasse no Paraguai segundo Domingo Laino.
Depois de algumas conversas pelo telefone, os dois decidiram se encontrar em Marina Cué para, dali, emprender a fuga. “Terrível” é a palavra que usa Dani para descrever como foi para ele voltar àquele lugar. “Terrível, terrível”, repete, apertando os lábios. De Curuguaty, viajaram de carro a Assunção, e se alojaram na casa de Laino, enquanto ele buscava uma solução. Laino, figura conhecida na política paraguaia, exilou-se na Argentina durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954 – 1989). Dessa vez, ele diz ter contatado a embaixada argentina em Assunção: deixaria os três foragidos na fronteira. Procurado pela reportagem, o governo argentino não confirmou nem desmentiu a informação, alegando que a lei impõe confidencialidade para o caso de refugiados.
Depois alguns dias de planejamento, seguiram de carro até o limite com a Argentina. Com o coração palpitante, as mãos suando e a boca seca, cruzaram a fronteira a pé. Assim que entraram, pediram status de refugiados. Durante 12 horas, que pareceram intermináveis, foram entrevistados por guardas da fronteira. Passaram por uma revista médica; tiveram que explicar por escrito os motivos de seu pedido de refúgio, por que tinham que deixar o Paraguai e ficar na Argentina.
Finalmente, acompanhados de dois guardas de fronteira, viajaram de ônibus até a Estación de Retiro, na zona portuária de Buenos Aires. Chegaram em um sábado de outubro. Um irmão de Héctor vivia em uma comunidade na zona sul da cidade: era para lá que planejavam ir. Os guardas se ofereceram para levá-los, mas eles preferiram esperar alguns dias. Passaram o fim da semana em um edificio da Guarda Nacional de Fronteira. Foi uma noite triste, embora tranquilizadora: ao menos estavam longe da polícia paraguaia e ninguém poderia prendê-los. Os guardas ofereceram mate, comida e um lugar para dormir. Era o primeiro refúgio.
Na segunda-feira seguinte, chegaram à comunidade onde iriam começar vida nova.
Mas, um ano depois, Dani não consegue parar de pensar no seu Paraguai.
O pesadelo de Curuguaty
Em 15 de junho de 2012, havia cerca de 70 camponeses, incluindo mulheres e crianças, no terreno de Marina Cué. No dia marcado para a reintegração de posse, esperavam falar com a polícia. “Queríamos ver os papéis da propriedade, só isso. Mas logo começaram os disparos, e….”. Dani interrompe a fala, o rosto fica vermelho. Mais uma vez, silêncio.
Tudo começou por volta das 7:30 da manhã. A polícia havia recebido a ordem de desocupar a terra. As ocupações de sem-terras eram frequentes naquela região, mas o caso de Marina Cué era único. O terreno era alvo de uma complexa disputa judicial entre a empresa Campos Morumbi S.A., do falecido Blas N. Riquelme, político do partido Colorado, e o Instituto de Terras paraguaio. Havia sido entregue oficialmente ao Instituto e destinado à reforma agrária, mas a empresa Campos Morumbi o reclamou perante a justiça local, que aquiesceu. Uma procuradora solicitou a reintegração de posse, e um deputado, o também colorado Oscar Tuma, pediu que o Congresso respaldasse a medida judicial.
Dani e Ramírez eram dois dos 30 camponeses que se aproximaram da entrada para receber a polícia naquela manhã. Alguns dos seus companheiros, muito poucos, segundo ambos, levavam velhas escopetas de caça. Não sabiam se as escopetas funcionavam e – segundo a versão deles – nem tampouco haviam averiguado. Nenhum dos dois portava armas de fogo.
Dani, que estava um pouco afastado do local onde começou o tiroteio, lembra ter escutado o primeiro disparo. “Ouvimos um barulho, demos uma volta e olhamos para o outro lado. Aí saímos correnedo pelo pasto, nos escondemos na baixada, ao lado de um riozinho”. Segundos depois, ouviram uma rajada de tiros que lhes pareceu interminável. Houve gritaria, confusão, e todos se puseram a correr. A polícia estava atacando. Correram para os montes sem olhar para trás. Mas estavam certos de que alguns dos seus companheiros estavam mortos, “talvez todos”, murmura Dani. Quem sabe também eles morreriam. Não havia nada a fazer.
Ainda hoje, Dani se lembra vívidamente de um helicóptero que voava tão baixo que parecia que iria aterrissar sobre eles; uma sirene ensurdecedora.
Afinal, houve sim sobreviventes. Alguns passaram a noite escondidos nos montes, como Dani, até as 5 da manhã. Outros, os que tinham celular para se comunicar com algum conhecido, puderam se refugiar em casas perto dali.
Escondiam-se sem saber até quando. Esperando. Temiam que a polícia ainda estivesse por ali, pronta para disparar contra eles. Não sabiam, nem tinham como saber, que neste momento o Ministério Público os acusava de haver perpetrado o massacre. Nem que o tiroteio que acabavam de testemunhar terminaria por derrubar um presidente.
No dia 21 de junho de 2012, Lugo foi denunciado perante o Congresso. Apesar de protestos populares em sua defesa e da intervenção de todos os chanceleres da Unasul, que viajaram a Assunção para tentar conversar com representantes do parlamento e com o vice-presidente, pedindo que impedissem o impeachment, Fernando Lugo foi destituído no dia seguinte.
O promotor Jalil Rachid encabeçou investigação oficial sobre o massacre de Curuguaty. Sua conclusão foi simples: os camponeses armaram uma emboscada para assassinar seis policiais. Dos camponeses sobreviventes – incluindo Rubén Villalba e o irmão de Hector, Alcides Ramirez – 14 permanecem detidos. No início deste ano, após uma longa greve de fome, a justiça permitiu que alguns deles esperassem o julgamento – ainda sem data marcada para acontecer – em prisão domiciliar.
O refúgio
O status de refugiado se concede a alguém que é forçado a abandonar o seu país de residência porque sua vida ou liberdade correm perigo devido à violência generalizada, conflitos armados ou violações massivas de direitos humanos. A Comissão Nacional para Refugiados do governo argentino (Conare) é encarregada de conceder o refúgio e de apoiar os refugiados para que se integrem no novo país. Entre os deveres do país anfitrião em relação aos refugiados, que constam na lei N° 26.165, está “o respeito aos princípios de não-devolução, incluindo a proibição de negativa de entrada na fronteira, a não discriminação, a não sanção por entrada ilegal, a preservação da unidade da família, a confidencialidade e o tratamento mais favorável à pessoa humana”. Tais princípios valem “tanto para o refugiado reconhecido como tal, quanto para o solicitante”.
Depois de descerem dos montes, na manhã seguinte ao massacre, Dani e Héctor ficaram trancados nas suas casas durante os quatro meses seguintes. Só saíam quando ficavam sabendo por vizinhos e amigos que haveria uma busca policial, para se esconder em outra casa, até que a polícia fosse embora. Era uma rotina de medo. Não podiam dormir tranquilos, deixaram de trabalhar. Vivam como prisioneiros. Foi pelo rádio ficaram sabendo quantos companheiros foram mortos, que houve policiais falecidos, que Lugo foi destituído. Também foi assim que souberam que a justiça paraguaia acusara a todos, sem distinção, pelas mortes.
Através de um amigo advogado comprovaram que seus nomes figuravam entre os que tinham mandado de prisão decretado: a qualquer momento poderiam ser presos. A menos que continuassem fugindo.
Héctor, Fredy e Dani pediram refúgio na Argentina, mas a sua solicitação ainda está em trâmite. Em teoria, nenhum dos três pode ser expulso, devolvido ou extraditado para o Paraguai enquanto perdurarem riscos à sua vida, liberdade ou segurança. O governo argentino também tem o dever de conceder uma permissão de trabalho temporário e um Documento Nacional de Identidade (DNI) para que exerçam os seus “direitos civis, sociais e culturais”, segundo as regras da Conare.
Agora, resta-lhes esperar que os dois países – Argentina e Paraguai – decidam seus destinos. E que a justiça paraguaia afirme qual das versões sobre o massacre de Curuguaty prevalecerá.
Na versão oficial, que se tornou um processo judicial instruído pelo promotor Rachid, os camponeses são os acusados e os policiais, testemunhas e vítimas. Nessa versão o provocador da tragédia foi Rubén Villalba, um dos líderes da ocupação e mentor da “emboscada”. A última audiência aconteceu em 12 de setembro. Os advogados dos camponeses fizeram uma queixa formal contra a juíza Rosa Yanine Ríos, a quem acusam de ser “parcial” no seu julgamento. Também pedem que a Justiça determine a quem pertencem as terras reclamadas, já que o título de propriedade ainda não apareceu. Essa mesma Justiça vem recebendo duras críticas da opinião pública paraguaia e de vários organismos internacionais, como a ONU e a Anistia Internacional, que pedem “uma investigação imparcial e independente”.
A outra versão dos fatos foi levantada pela investigação paralela realizada pela ONG PEICC, de Domingos Laino, que defende os camponeses e pede a anulação da investigação do promotor Jalil Rachid. Entre os fatos levantados está o de que apenas cinco escopetas de caça e um revólver foram encontradas no terreno, o que difícilmente causaria tantas mortes, e pelo menos um fuzil automático foi utilizado no massacre, arma cara e inacessível aos camponses. E destaca a presença de crianças e mulheres no local: os camponeses teriam planejado uma emboscada pondo em risco suas próprias familias?
Enquanto as autoridades dos dois países discutem o que será feito deles, os três jovens foragidos vivem em quartos alugados na periferia de Buenos Aires, lar de uma grande comunidade paraguaia. Trabalham como pedreiros de segunda a sábado, de manhã até amanhecer. O trabalho é informal, já que ainda não receberam seu documento de identificação. Telefonam para suas famílias no Paraguai uma vez por semana. Evitam falar de Curuguaty; preferem se inteirar de nascimentos ou casamentos. Nem Dani nem Héctor têm filhos ou esposa. Por sorte, dizem. Aos fins de semana, às vezes vão a alguma festa na região de Constitución. Têm saudades da família, da tranquilidade do campo, da comida caseira de suas mães, da possibilidade de caminhar pelas ruas de seu bairro. E do calor.
Dani ainda tem pesadelos. De noite, sua cabeça se enche de imagens dos companheiros fugindo. Escuta os gritos das crianças e de suas mães, e os disparos. Ele se vê correndo pelo campo, enquanto outros camponeses caem mortos no caminho; a sirene do helicóptero soa estridente. Depois ele acorda, em uma comunidade na periferia de Buenos Aires, bem longe de casa.
*Colaborou Natalia Viana, da Pública
Leia também a Parte #1: O bispo e seus tubarões
Parte #2: O impeachment visto do palácio
Parte #3: Curuguaty, a matança que derrubou Lugo
Parte #4: Os EUA e o impeachment