Fábrica que se instalou nos anos 1960 na cidade baiana de Santo Amaro fechou e deixou um rastro de contaminação
Por Vitor Nuzzi, da RBA
A instalação de uma fábrica na pacata Santo Amaro, a 70 quilômetros de Salvador, foi um alento. Em 1960, a cultura da cana-de-açúcar há muito deixara de impulsionar a economia da região. E ser funcionário da Cobrac, a Companhia Brasileira de Chumbo, também dava status. “Todo mundo achava que ia se dar bem”, diz Luciano dos Santos, ex-funcionário. “Em termos financeiros, era o melhor lugar”, conta Nicolau Sousa Passos Filho, que ficou durante seis anos. “Quem trabalhava lá tinha crédito em qualquer lugar”, acrescenta Raimundo Santana Alves. Todos fazem parte da longa lista dos que hoje se queixam de um sem-número de problemas de saúde decorrentes da exposição a metais pesados, como chumbo e cádmio. Muitos estão em casa, sem condições de sair. Outros tantos já morreram.
Em dezembro de 1993, a empresa, já com o nome de Plumbum, fechou as portas sem avisar. Um dia, chamaram os funcionários e disseram que era para esvaziar os armários – rapidamente. “Nem gerente sabia”, conta Antônio Severino Oliveira, que saiu dois meses antes. “Largaram ferramentas, tudo”, lembra Antônio de Sousa Porto. Mas ficaram também resíduos que, ao longo do tempo, contaminaram funcionários e moradores. Santo Amaro tornou-se, talvez, o mais emblemático caso mundial de contaminação por chumbo.
Tornada cidade em 1837, Santo Amaro é um dos municípios que compõem o Recôncavo Baiano, no entorno da Baía de Todos os Santos. Desde 2000, tem se mantido com população em torno de 58 mil habitantes. No trânsito tranquilo, destaca-se a presença das mototáxis. Segundo o IBGE, em 2012 havia mais motocicletas (2.962) do que automóveis (2.788). No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), situa-se em 44º lugar entre os 417 municípios da Bahia.
A antiga fábrica fica a aproximadamente dois quilômetros da Igreja da Purificação, a matriz, que dá o nome pelo qual a cidade é mais conhecida. Localizada na Avenida Rui Barbosa, na saída da cidade, à beira do Rio Subaé – que corta toda Santo Amaro –, agora é um monte de escombros. No que já foi o portão de entrada, uma placa, atrás da grade enferrujada, avisa: “Propriedade particular – Proibido (sic) a entrada – Área com resíduo de chumbo”.
Há quase 40 anos estudando o local, o professor Fernando Martins Carvalho, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vê uma situação grave de negligência. “Era a grande empresa do local. Se fosse uma empresa brasileira na França que poluísse lá, o que a França iria fazer?”, diz, referindo-se ao fato de, na origem, a Cobrac pertencer ao grupo francês Penarroya Oxide, hoje Penox Group, um dos líderes mundiais na produção de óxido de chumbo, com atividades na Alemanha, Espanha e México.
Em 1989, a fábrica de Santo Amaro foi vendida e incorporada à Plumbum Mineração e Metalurgia, ligada a um grupo brasileiro. Depois de fechada, ali funcionou durante algum tempo uma fábrica de guardanapos. Em 2000, a escória abandonada no local foi encapsulada.
Evidências de contaminação vêm ainda da década de 1970. Em ação de 2003, o Ministério Público Federal afirma que todos os argumentos exibidos pela empresa “não se revelam capazes de sequer pôr em dúvida” que Santo Amaro “foi – e continua sendo – vítima de uma poluição grave, prolongada e apenas parcialmente reversível”.
Também em 2003 o Ministério da Saúde fez um estudo pormenorizado. Embora relutante quanto à relação causal entre exposição a metais e doenças, destaca o fato de que os trabalhadores nunca tiveram atenção à saúde específica e diferenciada, compatível com o grau de risco de adoecimento que sofreram durante o período em que estiveram expostos. “Vários desses trabalhadores já têm o diagnóstico estabelecido de saturnismo”, diz o ministério, referindo-se à doença decorrente da intoxicação por chumbo.
“Desde o começo era muito claro que tínhamos um grande problema ocupacional e ambiental, negligenciado pelos órgãos públicos e pela empresa”, critica Fernando Carvalho. “Durante 32 anos a empresa produziu 500 mil toneladas de escória (resíduo). A prefeitura usava essa escória para fazer pavimentação das ruas. Desde os anos 1980, dizíamos que isso era prejudicial à saúde, que a escória era tóxica. O Estado comia a farofa, para usar uma expressão baiana.” Segundo Carvalho, o chumbo tem vários efeitos nocivos, como anemia, paralisia, doenças arteriais, além de ser um provável cancerígeno. “Todos os ex-funcionários devem ser monitorados.”
Sem controle
“O que falta é ser feito um acompanhamento sistemático de pessoas que moram perto”, acrescenta a jornalista Maiza Ferreira de Andrade, mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Faculdade de Medicina da UFBA. “A empresa operou 20 anos praticamente sem nenhum controle.” O caso de Santo Amaro foi muito estudado. Acompanhamento feito pela pesquisadora no período 1975-2010 coletou cinco teses, 15 dissertações e seis monografias. Da mesma forma, não faltaram estudos de órgãos públicos e ações judiciais. Faltaram mesmo soluções.
No bairro do Derba, na entrada da cidade, vive Luiz Alves da Silva, o Lula, 62 anos, 12 passados na fábrica. Com aparência frágil, ele relata o que vem sentindo há tempos: “Tontice, pressão alta, e agora me apareceu uma dor nas pernas que não consigo andar pra longe. Eles só mandam fazer exame. Agora, o cardiologista mandou fazer exame de pulmão. Aqui não faz, só em Salvador. Mas não tenho condições de viajar”. Também tem restrições alimentares. “Não posso mais comer farinha.” E sente falta de ar e dor ao mastigar. Alagoano que chegou a Santo Amaro no início dos anos 1980 para trabalhar, Lula não tem mais forças nos braços que puxavam pesados lingotes – agora, não consegue segurar a neta de 10 anos. A única renda vem da mulher, Rita, que trabalha de doméstica “quando dá”. “Tenho de ficar olhando ele.”
Há frequentes relatos de acordos fechados na Justiça do Trabalho com valores reduzidos. Criada há dez anos, a Avicca, associação que reúne as vítimas da contaminação, tenta reabrir alguns. Somente em 2006 e 2007, segundo o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da Bahia, a Vara de Santo Amaro recebeu 777 ações da Justiça Comum, referentes a doenças ocupacionais. Foi feita parceria com o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (Cesat) para produção de laudos. Em 2008, em três dias de mutirão, a Vara promoveu 49 conciliações, somando R$ 108 mil – pouco mais de R$ 2 mil por caso.
Dona Maria de Lourdes Pereira Barbosa, 71 anos, que há três perdeu o marido, José Cassimiro Barbosa, acabou aceitando um acordo de R$ 70 mil. “Eles (advogados) ficaram lá dentro me opressando”, conta. “O homem morreu muito acabado. As unhas dele eram uma massa, os pés também… Andava dez minutos, parava meia hora.” Ela perdeu também o filho mais velho, outro ex-funcionário, aos 39 anos, com quatro filhos. Ela mesmo diz sentir fraqueza. “Até para falar estou com deficiência.” Recebe uma pensão de R$ 1.200. “Como é que vou trabalhar agora, se nem peso aguento carregar? Antes vendia marisco pelas feiras”, diz Maria de Lourdes, dez filhos, 46 netos e 25 bisnetos – metade mora em Santo Amaro, metade em Salvador.
Júlia da Anunciação de Oliveira relata uma situação comum às viúvas de trabalhadores. Ela lavava a roupa que o marido, Damião, trazia da fábrica, expondo-se à contaminação. “Além da cabeça, o corpo dói. Tenho dor nas mãos, no pescoço, problemas cardíacos.”
Depois de três anos trabalhando na fábrica, Gérson “saiu já doente”, conta Gilda Paixão Soledade Baraúna, 70 anos. Sofreu um acidente vascular cerebral e morreu há seis anos. “Meu marido sofreu muito e se acabou, ficou apodrecendo em cima da cama. Ficou quatro anos em cima da cama, como tantos outros, sem direito a nada.” Ela também relata sentir dores constantes, hipertensão e fraqueza. “Não consigo abrir uma garrafa.”
Boca do forno
José Roque das Mercês, 67 anos, morou na mesma Avenida Rui Barbosa, a 300 metros da fábrica, onde entrou em 1968. “Trabalhava na boca do forno.” Aposentado por invalidez, tem osteoporose, artrose, tontura, problemas de audição, dores no corpo. “Morriam muitos animais (no entorno da fábrica), mas ninguém sabia a causa.”
Quem também trabalhava na carga do forno, “um lugar perigoso”, era Carlos Alberto Pereira Paranaguá, 58 anos, servente que ficou na fábrica entre 1988 e 1989 e se queixa de problemas na visão e nos joelhos. Foi afastado pelo INSS. Seu colega Antônio Severino Oliveira, 54 anos, entrou lá em 1980 e saiu em 1993, dois meses antes do fechamento. Tem pressão alta e reclama de dores que não cessam. “Sempre tive problema de dor. Um dia, o médico chegou e me deu (receitou) 184 injeções. Até hoje não sei para que era”, conta Antônio, que tenta reabrir seu processo. “Não recebi nem um real, não trabalhei mais em lugar nenhum, nem me aposentei.”
Com 66 completados neste 25 de setembro, o ex-funcionário Antônio Roque de Sousa Serra conta que “o rim parou” há alguns anos e o levou à hemodiálise. Aposentado, recebe o equivalente a um salário mínimo. “Minha esposa é que me segura.” De 1969 a 1975 na Cobrac, José Alves Ferreira sofreu AVC e tem dificuldade de falar. Trabalhava na metalurgia, carregando carga do forno. Aposentou-se por invalidez e ganha um salário mínimo. “Ruim, ruim”, limita-se a dizer, fazendo um gesto com a mão. Vive com a mulher, Leonice. “Eu, ele e Jesus”, diz ela.
Professora titular do Instituto de Química da UFBA, Tania Tavares, ao lado de Fernando Carvalho, também acompanha os problemas de Santo Amaro há algumas décadas. Com dificuldades, conta: “Eu nem podia entrar na fábrica. A indústria não deixava”. Ela lembra que a instalação se deu em uma época que não havia nenhuma preocupação com danos ambientais. Hoje, a contaminação maior está no solo. “A empresa deixou lá algumas toneladas de resíduo sólido.”
Nos anos 1970, com as primeiras pesquisas sobre efeitos do chumbo em pescadores e trabalhadores, a empresa teve negada licença para ampliar a produção. Estudos feitos a partir da década de 1980 mostraram contaminação em crianças, com altas concentrações de chumbo e cádmio no sangue.
No rosário de ações relativas ao caso, em fevereiro deste ano a Justiça Federal, a pedido do Ministério Público, determinou que a cidade de Santo Amaro recebesse um centro de referência para tratamento de vítimas de contaminação por metais pesados. A implementação, em um prazo de seis meses, ficaria a cargo da União e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que recorreu. O Ministério da Saúde informa considerar “mais eficiente e mais conveniente” usar a rede já existente. Diz estar prestando desde 2003 assessoria técnica para atendimento à população exposta a metais pesados, com repasse de R$ 30,5 milhões ao município e ao estado.
Protocolo
Entre essas ações, o ministério destaca um protocolo firmado em parceria com os três níveis do Executivo que estabelece procedimentos para acompanhamento da saúde da população, baseado em princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). “É um assunto que incomoda, é como se fosse um calo. O desafio é tornar esse protocolo uma prática dos profissionais de saúde do município, com toda a supervisão das autoridades do estado e federais”, diz Maiza Andrade.
Desarquivado há dois anos e meio, um projeto de lei estadual de 2007 (nº 16.622) tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa baiana. A proposta é de criação de um fundo de assistência às vítimas da contaminação. O relator, deputado Zé Raimundo (PT), deu parecer contrário. “É uma lei que cria fundos, mexe em orçamento. É uma matéria que só pode ser normatizada pelo Executivo”, argumenta o parlamentar. “Mas todos nós concordamos com a iniciativa, que é louvável, porque visa restaurar um direito.”
Adailson Pereira Moura é o presidente da Avicca e articulador de movimentos sociais na região. Morava a 50 metros da fábrica, mas diz que relutou até onde pôde para trabalhar lá, só aceitando por estar desempregado. “Sabia que estava assinando a minha sentença”, afirma. Ficou apenas alguns meses na Plumbum, de maio a dezembro de 1993, quando a unidade fechou. Ele lembra data e hora: 14h30 de 27 de dezembro. “Reuniram todo mundo da produção e disseram: vocês podem descer e pegar tudo que está no armário, porque a empresa está fechada. Tinha mais de 100 homens da segurança”.
Pelé, como é chamado na cidade, gosta de pintura. A parte de cima da sua casa, que por um tempo abrigou reuniões da associação, tem vários quadros, a maioria abstratos. É a terapia do mecânico de manutenção, que conta ter pouca força na mão esquerda e dores crônicas nos joelhos. À noite, diz se mexer como se tomasse choques. “A empresa formou um centro médico para que a saúde pública não soubesse o que acontecia lá dentro. Esses empresários nunca sofreram nenhuma penalização do governo, que foi conivente.” Exibe algumas centenas de atestados de óbito de ex-trabalhadores: grande parte traz como causa da morte insuficiência respiratória ou cardiorrespiratória e AVC. No total, quase mil morreram, segundo ele. “Existem coisas na Justiça que a gente não entende.”
Coordenador de Meio Ambiente da Secretaria Municipal, Augusto César Lago Machado também é ex-funcionário da Cobrac/Plumbum – de 1971 a 1990. Aposentado por tempo de serviço, conta que está perdendo os movimentos da face. Para ele, falta comprometimento e vontade política. “Parece que há uma orquestração. Laudos médicos reconhecem (os problemas), mas as instituições não.” Ele chama o caso de genocídio. “Por que nunca acionaram o grupo Penarroya?”
Samba e candomblé
Santo Amaro também é terra do samba de roda, característica do Recôncavo. É terra de Assis Valente, Mano Décio da Viola e Tia Ciata. E tem o chamado Bembé do Mercado, uma manifestação de candomblé em praça pública com origem no século 19, para celebrar a abolição da escravatura – um decreto do governo estadual, de setembro do ano passado, tornou a cerimônia Patrimônio Imaterial da Bahia.
Do lado da secretaria fica o Teatro Dona Canô, onde em maio se realizou um simpósio para discutir possíveis soluções para Santo Amaro. O nome homenageia a mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, entre outros filhos, que morreu em dezembro de 2012, aos 105 anos. No início dos anos 1980, Caetano compôs Purificar o Subaé, em que fala da poluição na cidade.
“Eu ouvia falar que a ‘fábrica de chumbo’, que ficava lá para os lados da estrada velha, acima do (Rio) Sergi-Mirim, matava a vegetação em volta. Mas naquela altura fiquei sabendo, por Violeta Arraes Gervaiseau, que os danos eram muito mais sérios e abrangentes”, conta Caetano, referindo-se à socióloga irmã de Miguel Arraes, a “Rosa de Paris”, que apoiava exilados brasileiros durante a ditadura. Violeta morreu em 2008.
“O samba é um protesto e uma oração”, define Caetano. “Fala dos rios que cortam a cidade e das invocações de Nossa Senhora que denominam as paróquias – Purificação, Amparo e Rosário – e brada ‘mandar os malditos embora’. É chocante que os donos de empresas e os políticos que lhes concedem licenças sejam tão desumanos quando se trata de ganhar dinheiro. Mas é assim. Minha cidade natal é um dos pontos mais contaminados do globo terrestre. Precisamos lutar permanentemente contra isso e contra o que produz esse tipo de situação. Como?”
A poucos metros da secretaria e do teatro, um senhor pesca no Rio Subaé. Tilápia, robalo… “Para comer e para vender”, conta. Perguntam se ele não tem receio da contaminação, e a resposta mistura desdém e realismo: “Se pensar em contaminação, a gente não veve. Hoje em dia tá tudo contaminado”.
Ney Didan,
a fonte está informada. No início da matéria, ao lado do nome da pessoa que a escreveu – o Vitor Nuzzi -, diz: “da RBA”, que significa Rede Brasil Atual. E se você clicar nesse RBA, verá que ele está linkado à matéria original, para a qual você será imediatamente levado.
Tania Pacheco por favor, gostaria que informasse quem é o senhor Vitor Nuzzi, da RBA? que ublicou aqui essa materia?,e gostaria que tambem informasse de quem seria a publicação? pois nao esta sendo informado a fonte, gostaria de relata algo,pormenorizado mas